Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

31  10 2008

Bichos

Em Luanda, como em grande parte de África, há muitos cães. Cada esquina tem o seu e há alguns becos com pequenas matilhas. Todos têm o mesmo aspecto macilento, de rafeiro empoeirado, filho de primo, tio de si mesmo e avô do seu irmão.

À semelhança dos humanos com quem vivem, também compartilham a miséria. Na capital, poucos são os cães com ar saudável. Curiosamente, ao contrário dos humanos, ainda não vi cães ricos.


Vendo Luanda passar

Nos musseques, as orelhas dos bichos competem com as ruas em número de buracos. Em animais cobertos de pó encontramos sempre duas manchas vermelho-vivo a adornar a cabeça. Não se trata de vaidade. A tinha, a sarna e as larvas das moscas deixam a sua marca.

Os cães, quando estão doentes, deitam-se à espera. Esperam a cura ou a morte. Uma delas é garantida. Nas ruas vêem-se muitos cães magros só à espera, apáticos. Corre o boato de que chineses e coreanos compram os rafeiros menos doentes…

Tal como os angolanos de dois pés, os de quatro patas são quase todos novos. Muitos cachorros com ar assustado percorrem as ruas. Fogem do trânsito, das pedras que os miúdos lhes atiram e dos porcos com quem competem pelo lixo com que se alimentam. Têm medo. São esquivos e ao menor pretexto desatam a ganir atrozmente enquanto fogem de rabo-entre-as-pernas. As cadelas, que andam sempre prenhas, vão procurando alimento nos montes de lixo e bebendo do que escorre das valas. As ninhadas são grandes mas poucos sobrevivem às primeiras semanas.

A caminho da Praia do Bispo, logo abaixo da Fortaleza de Luanda, na antiga Praia do Sol, entretanto já desaparecida, costumo ver um miúdo que passa o tempo sentado na soleira do portão do quintal. Ao colo costuma ter um cão amarelo. Várias foram as vezes que me arrependi de não ter a máquina fotográfica comigo, para imortalizar aqueles dois amigos.

Os poucos cães velhos que se vêem ostentam cicatrizes feias, de atropelamentos menos trágicos. Ninguém abranda ou desvia o carro por causa de um peão, quanto mais por um cão. O cão no meio da estrada é tratado como mais uma lata de cerveja vazia, à qual se aponta a roda do carro. Se se desviar, muito bem, se não, tanto pior para a lata. Ou para o cão.


Reciclagem com pernas

Os que ficam no meio da via depressa se transformam num papa indistinta que só dificilmente acreditamos que já foi um cão. Os que morrem nas bermas escapam a esse destino. É frequente ver cães a guardar os cadáveres e, por vezes, a tentar empurrá-los para longe da estrada. É impossível não fazer comparações com emoções humanas…

Um pouco fora do centro de Luanda, vemos alguns rebanhos de cabras. Nunca são muito numerosos porque a carne de cabrito tem muita procura. O cabrité , carne de cabrito grelhada, é um prato habitual e sempre são cinco milhões de pessoas a comer. Dizem também que há poucos gatos em Luanda por causa do cabrité… pelo sim, pelo não, da próxima vez pergunto se o cabrito miava quando era vivo.


Cabrité em bruto

Os vendedores que ganham a vida no meio das filas de trânsito, entre outras coisas, vendem coleiras e trelas. A princípio achei estranho, porque não via ninguém a passear cães na rua.

Quando comecei a reparar mais nos pormenores e menos nas generalidades, apercebi-me que os nossos vizinhos têm dois na varanda. Na rua há mais uns quantos e, se tivermos sorte, podemos ver crianças a passeá-los.

Na província, não há trelas e as coleiras resumem-se a um baraço. Os cães são tratados com alguma indiferença, mas são considerados os melhores amigos. Chora-se mais a perda de um cão do que a de um cabrito, embora o cabrito valha dinheiro e o cão não. Partilham o mesmo ar temeroso dos cães de cidade, mas estão menos magros e com o pelo bem mais lustroso.

Os porcos que se vêem nas ruas, estão-se nas tintas para o trânsito, para as pessoas e para os buracos com lama. Todos se desviam deles. Numa terra onde a lei do mais forte ainda vai reinando, eles estão no topo da hierarquia. Se vemos um monte de lixo a mexer, podemos apostar que do outro lado há um porco a revolver as coisas.


Foge coelho, foge

As galinhas, omnipresentes até nos jardins dos edifícios públicos, vivem num limbo. Não se lhes presta atenção até ao dia em que vão para a panela.

A poucos quilómetros de Luanda já se encontram bandos de macacos nas matas. Por já saberem o que os espera, fogem das pessoas assim que as vêem, lançando gritos de alarme CAH! CAH! CAAH! Os pássaros, confiantes da sua vantagem aérea, esperam até mais tarde. Aguardam pelo momento em que lhes apontamos a máquina fotográfica e levantam voo no preciso instante em que decidimos carregar no botão.

No mercado de arte há sempre alguém com um pequeno macaco cinzento para atrair os compradores. O macaco também está à venda.


Vizinhos

Adenda: A Karima relembrou-me as palavras sábias de Gandhi, que dizia poder-se avaliar a cultura de um povo também pela maneira como trata os seus animais. Os angolanos tratam os animais como podem. Três décadas de guerra apagaram várias gerações e com elas, muita cultura. Daqui para a frente só pode é melhorar.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “Bichos”

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  1. Nas estradas tenho visto muitos cabritos atropelados… Outro dia cruzei com um ainda agonizante, na pista contrária, cercado por seus pares desesperados. Muito triste mesmo de se ver, mas nada que se possa fazer.

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