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Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

18  11 2008

Regresso à Muxima

Luanda dá cabo dos nervos a qualquer um. De vez em quando é preciso esticar as pernas ao espírito, só para não dar em maluco.

A vida fora da capital tem ritmos e bases diferentes. As pessoas são pessoas. Não foram desumanizadas pelos esquemas e jogos da cidade grande. Ninguém nos pede dinheiro para ficar a controlar o carro e os olhares trocados já não denunciam a cobiça pela carteira do pula.

Depois de uma curta visita ao mangueiral do outro lado do rio, na Cabala, ficou decidido voltar a fazer a viagem, rumando até ao Santuário da Muxima. Os últimos dias em Luanda exigiam-no!

Como sempre, os planos de sair cedinho foram postos de parte lá pelas onze. Mesmo assim, resolvemos sair. Tratámos de compôr o farnel e fizemo-nos à estrada. Cerca de duas horas depois, esperávamos o fim da pausa dos barqueiros.

A Cabala estava, na sua maneira especial, linda. Nesta travessia, que julgo ter sido a última, porque a ponte está quase concluída, nem tirei fotografias. Voltei a perder-me nos pensamentos dos barcos e dos rios.

Vi os porcos deitados na lama olhando as lavadeiras quase nuas ali ao lado. Vi dois homens a lavar a roupa enquanto três mulheres assistiam. Vi as crianças a atirar água umas às outras. Reparei que a espuma branca que saía das hélices completava o jogo de cores da jangada azul. A sombra das mangueiras estava à nossa espera para o almoço. Atracámos.

A estrada até à Muxima ainda está a ser reparada. Depois da época das chuvas vai ficar em mau estado, mas, até lá, circula-se bem. Cerca de três quartos de hora depois de comer, o cotovelo do Kwanza aparece no sopé de um monte. O verde das margens contrasta com a paisagem vermelha e cinzenta que nos tem acompanhado nos últimos quilómetros.

Desta vez já não vi lavar a igreja. Voltei a não entrar. Toda a gente se descalçava e deixava os chinelos à porta. Eu estava de botas.

Muita gente dormia a sesta à sombra da igreja. No rio, homens e mulheres tomavam banho. Elas, com as crianças, perto das pedras onde lavam a roupa. Eles, uns metros mais abaixo.

No jardim da igreja, cada arbusto ou sebe tinha uma peça de roupa a corar ao sol. Algumas crianças brincavam com os tachos e panelas vazios. Dois rapazes esticavam a pele de um tambor alto com capim a arder. Noutro recanto, mais quatro rapazes formavam um quadrado e rezavam o terço, com as mãos levantadas como se segurassem uma bandeja.


Afinando o tom

O serviço religioso começou. Os adultos foram entrando e as crianças continuaram as suas brincadeiras, agora com menos constrangimentos. Riam quando escorregavam pelo muro. Bateram palmas quando o mais novo aprendeu a fazê-lo.


Acrobacias

Chegada a hora do regresso, despedimo-nos da Muxima. Voltaremos em breve. É um sítio bonito em tantos aspectos. Apetece ficar cá mais tempo e falar com as pessoas, aproveitar cada momento.

Na berma da estrada, uma menina retribuia o aceno, enquanto o Kwanza ficava para trás. Um pouco mais à frente, à saída da povoação tivemos direito a mais um momento raro. Miúdos a brincar com brinquedos feitos por eles. As brincadeiras em Luanda são mais raras e as crianças não têm oportunidade de construir coisas com tanto esmero.


A corrida

Parámos para conversar. Que diferença para os miúdos de Luanda que, desde pequenos aprendem a ser desconfiados e a dominar esquemas! Estes sorriem, mostram-se orgulhosos da sua obra. Não pedem kwanzas…

Apresentei-me a cada um deles. E cada um falou da sua máquina.


O Bitó tem um Land Cruiser que vai a todo o lado

Com muito engenho, latas de salsichas, óleo ou margarina são transformadas nos carros de sonho de cada um.


O Simão tem um camião grande

Dobras e cortes estratégicos dão forma às carroçarias e às suspensões de cada carro.


O Alberto tem um Unimog da Polícia

O Alberto mostrava um Unimog com todos os detalhes. Grelhas de radiador, encostos de cabeça e, acima de tudo, polícias armados na caixa de carga, como vê no quartel da polícia da Muxima.


Com polícias armados na traseira

Os detalhes com que construíu este brinquedo são impressionantes. Até podemos reconhecer uma AK-47 nas mãos de um polícia de ar espantado.


O Gerson tem um Nissan Patrol

Se não fosse um acto criminoso, ter-me-ia oferecido para comprar os carros todos. São obras de arte! É claro que nunca me seria capaz de voltar a olhar ao espelho sem sentir remorsos. Estes miúdos correm à frente dos sonhos que puxam na ponta de um cordel. Não será a minha cobiça que os impedirá.


O Simão mais novo tem um Toyota Rav4

De qualquer das formas, nunca poderia encontrar nada que pudesse ser uma troca justa. Não se pode oferecer um brinquedo já feito a artistas destes. Não se pode oferecer dinheiro.

A solução que vejo, é ser eu a fazer um igual. Preciso é de um mestre. Um destes mestres que correm descalços, gozando a sua obra. Já me começa a faltar aquela ingenuidade que às crianças sobra. Como engenheiro, começava logo a fazer medidas e a tentar manter as proporções. Eles são guiados pelo sonho. E sabem que aquele seu carro é muito mais bonito que o verdadeiro. Já agora, eu também acho o mesmo!

Despedimo-nos destes condutores de sonhos e continuámos estrada fora.

Uns quilómetros adiante, parámos numa escola à beira do caminho, longe das povoações, mas com alunos. A última lição tinha sido quatro dias antes. Aqui, ao contrário de muitas salas de aula do país, há carteiras para os alunos. São um pouco toscas, mas partilham a magia dos brinquedos que vimos.

Como diziam na rádio há uns dias, a escola não é só o lugar onde as crianças aprendem a ler e a escrever. É onde aprendem a ser homens.


Aqui aprende-se

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

6 respostas a “Regresso à Muxima”

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  1. Gostei muitos dos artistas de palmo e meio que se cruzaram contigo nesta viagem à Muxima e sem dúvida que o talento é muito grande, os detalhes de cada máquina, é impressionante. As peças são mesmo muito bonitas.
    “Deus quer, o menino (homem) sonha a obra nasce”

  2. Este blogue está cada vez melhor!
    Parabéns!

  3. Também tenho cruzado alguns desses artistas nas províncias, Afonso. São eles que me devolvem a esperança no futuro.

  4. como eu adoraria conhecer essa desordem. esse cantinho do Mundo.
    Visitarei atentamente este espaço.
    Parabéns.

    saudações

    http:\\coresemtonsdecinza.blogspot.com

  5. Como são lindos esses artistas e “condutores de sonhos! Merecem que a vida lhes abra as portas do futuro. Talento e imaginação não lhes faltam. Afinal, quando vemos imagens destas, sentimos que o mundo não está completamente perdido e que o sonho ainda pode comandar a vida.
    Continua a mostrar-nos a alma desses recantos para que, também nós, relembremos a importância das pequenas coisas e não deixemos que o sonho esmoreça.

  6. Só hoje me foi possível voltar aqui mas não dei por perdidos os minutos que levei a ler este post, antes pelo contrário! Gostei muito. Vale a pena visitá-lo!

    Maria

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