Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

27  11 2008

Praia de São Tiago

Um pouco a norte de Luanda, já no município de Cacuaco, a costa vai descrevendo curvas suaves, que criam umas baías abrigadas muito agradáveis.

No tempo do colono eram conhecidas por ter praias sossegadas, onde se podia fazer boas pescarias. Não eram muito frequentadas porque as praias famosas eram as de Luanda, onde havia esplanadas e restaurantes.

Entretanto, a Revolução dos Cravos traçou o destino de Angola, já depois do fim da Guerra Colonial em terras angolanas. Angola seria independente mais cedo que tarde, mesmo com três movimentos incapazes de se entender sobre quem formaria o primeiro governo.

No início de 1975 percebeu-se que a guerra civil era inevitável, com as três forças a importar armas e soldados. Os famosos conselheiros militares cubanos do MPLA e congéneres da UNITA e FNLA começaram a chegar ao país.

Os colonos e as tropas portuguesas deixavam África, dando lugar a militares ao serviço de outros sonhos coloniais, ditados pela Guerra Fria.

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Praia de São Tiago

Ainda antes do 11 de Novembro de 1975, numa praia isolada perto de Luanda e a coberto da noite, um navio carregado de armas encalha. A enseada abrigada de olhares indiscretos e o areal extenso e compacto são ideais para o descarregar rapidamente e sem deixar rastos. Juntamente com a carga, também a tripulação desaparece, ficando apenas o navio abandonado a enferrujar lentamente na praia. Uma concha vazia, sem préstimo.

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Nomes esquecidos

A este seguiram-se outros. Muitos outros. Armas, munições, combustíveis e fardas foram sendo descarregados nestas condições, com navios do tipo tara perdida. A ausência de manifestos de carga não incomoda os fretadores e muito menos os intermediários, que recebem a sua parte. As perguntas indiscretas e de resposta embaraçosa deixam de fazer sentido quando os navios não regressam ao porto de origem.

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Dois irmãos que se amparam, partilhando recordações

Hoje em dia, quando se menciona a praia de São Tiago, todos nos falam dos navios que lá definham. Às vezes falam do seu propósito ou do que se fez com a mercadoria que transportavam.

Agora os navios servem de sombra nos dias de praia. A eles se encostam os grelhadores onde se cozinha o peixe acabado de pescar. Os porões esventrados acabam por ser usados como latrinas mais discretas, onde se ouve o rebentar das ondas contra as anteparas, fazendo tudo estremecer e soltando pedaços de ferrugem. São apenas a passagem para as escadas com poucos degraus inteiros que dão acesso aos conveses.

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Marcas do tempo que passa

As três décadas de água salgada e sol forte transformaram as grossas chapas dos conveses em labirintos de renda fina, onde se amontoam blocos de metal que se assemelha a cascalho. Lentamente, os passadiços vão tombando. Acabam por ser arrastados para o mar pela chuva e pelas ondas que conseguem galgar os costados.

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As cores esbatem-se com o passar dos dias

Entre válvulas e tubos corroídos que já não ligam a lado algum, preenchemos os espaços e adivinhamos onde se ligariam. Pensamos no que teria transportado este navio anónimo. Por ter como destino a praia de São Tiago, o nome que ostenta no casco não é importante. Na verdade, até interessa que seja esquecido.

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Tara perdida

Mas não está só. Por entre os ferros retorcidos vislumbramos outros cascos avermelhados, de histórias silenciadas. Ao longo de toda a baía vão olhando uns pelos outros, envelhecendo e tentando adivinhar quando é que o mar os vai vencer. Lembram-me baleias encalhadas, morrendo numa praia qualquer, naquelas espécies de suicídios colectivos que são noticiados.

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Corrosão

Nos meses e anos que se seguiram ao abandono de cada navio, tudo quanto poderia ser facilmente removido e transportado, acabou por desaparecer. As mangueiras, os instrumentos, algumas portas e vidros. O resto ficou. Não há sucateiros navais em Angola. Importa-se o aço. O que está nas praias ficará até que desapareça ou mudem as vontades.

Para já, a praia de São Tiago continuará a ser a baía dos esqueletos, assombrada por fantasmas ferrugentos, testemunhos de épocas conturbadas.

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Navio-fantasma

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

5 respostas a “Praia de São Tiago”

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  1. um cenário triste que me estraga as imagens que formava sobre Angola. Nada muda, apenas se completa e aproxima do real.
    mais uma vez grande apontamento.
    cá estarei da próxima.

    saudações

    http:\\coresemtonsdecinza.blogspot.com

  2. em Agosto de 2003 conheci essa praia
    a água estava bem mais quente que em pleno verão em Portugal.
    nessa altura olhei para essas velhas “armaduras” de navios, que permaneciam de pé, como que afirmando em jeito orgulhoso a sua imponência.
    Vistas de terra parece que ficaram ali como sentinelas a guardar a costa a as suas gentes. Quantos segredos não encerram dentro si, quanta história de Angola e das gentes que por ali passam, já presenciaram..
    São velhos. Enferrujados. Há quam diga que estragam a paisagem….mas são símbolo de um tempo que ainda guarda memórias!
    FR

  3. Mais uma descoberta impressionante…
    Esteticamente pode parecer feio, mas se cada navio contasse a sua história haveria muito para contar.

  4. Fabulosa descrição. Muitos parabéns pela forma como descreves as situações. És um excelente contador de histórias. Estive nesta praia em 2005 e dei-me ao trabalho de contar as carcaças visíveis (18, salvo erro).
    Já tinha tentado passar por aqui, mas a velocidade da internet não mo permitiu 😛
    Continuarei atento às tuas novidades.

  5. Caro Afonso,

    Fiquei com tanta curiosidade que segui até aqui o link que deixou no Diário da África a propósito do cemitério de navios da Praia de São Tiago. Terei de regressar aqui para ver com mais calma os seu aerogramas. Entretanto, convido-o a visitar as minhas viagens, também isentas de taxas…

    Abraço,

    Alexandre Correia

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