Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

20  01 2009

No mercado do Dondo

Ao contrário de muitos dos expatriados em Angola, que estão limitados a viver no centro económico do país, sem poder escapar à confusão de Luanda com facilidade, tenho podido dar umas voltinhas interessantes por esta terra. Com todo o poder económico e político concentrado na capital, Angola é Luanda e o resto é província.

Luanda, com toda a sua confusão, não deixa boa imagem de Angola. É por isso que aproveito todas as oportunidades para escapar da balbúrdia.

As viagens até ao Dondo, apesar de fisicamente extenuantes, deixam repousar a alma, relaxar um pouco o sexto-sentido que nos faz ir olhando sobre o ombro por um eventual larápio.

As pessoas que moram fora da vista da poeira da capital, são diferentes. Mais abertas e de sorriso fácil.

As cerca de três horas de estrada até ao Dondo correm bem. A estrada está em boas condições e a distância percorrida até parece mais curta. No entanto, graças ao hábito aborrecido que os carros angolanos têm de avariar a cada momento e à crença inabalável nas coisas de pré-sinalização, o perigo espreita no final de cada curva.

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A estrada é boa, mas esconde algumas surpresas

Também as matas que ladeiam a estrada, de aspecto inofensivo, por vezes nos deixam apreensivos. Uns paus pintados espetados aqui e ali relembram sempre o muro invisível que foi sendo construído ao longo de décadas.

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A triste realidade dos campos minados

Mas chegamos ao Dondo sem sobressaltos e com apenas alguns saltos num ou noutro troço de estrada mais esburacado.

A cidade do Dondo está entalada entre dois centros. De um lado tem o Kwanza, com a sua marginal. Aqui se acotovelam as lavadeiras, numa espécie de mercado bolsista de sabão, cuecas e camisas. As crianças passam o dia a brincar à beira-rio, correndo e mergulhando. Os mais afortunados surripiam uma câmara de ar e passam a ser os reis da festa, comandantes do seu paquete de borracha e ar. Todos os outros disputam o direito de navegar em tão exclusivo navio.

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Destino: Rio Kwanza, para muita brincadeira

Do outro lado da cidade, logo a seguir ao quartel de bombeiros, crescem as cubatas e casas tradicionais. Têm um ar mais salubre que as dos musseques de Luanda e, acima de tudo, estão mais afastadas umas das outras. Junto a estas, desenvolve-se um mercado cheio de vida, onde se vende tudo, excepto mexericos.

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Minguito e a sua loja de panos

A um canto temos as lojas de mobílias, que fazem camas e cómodas com restos de caixotes e pedaços sortidos de árvores. Torneadas à mão e com um desenho muito próprio, quase nos tentam a comprar. Mas a dificuldade de transporte faz-nos logo mudar de ideias.

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Aqui também há artistas pintores

Quase no centro do mercado, agrupam-se os restaurantes. As ementas são variadas quanto toca ao acompanhamento do funge. Há funge com tudo ou tudo com funge, ainda não percebi bem. A um canto funge de javali, a outro funge de vaca e, se tivermos sorte, vemos uma mulher a virar na grelha um roedor grande, de dentes salientes. Servirá para o funge de Paca…

Há também vendedoras de milho e banana-pão assados. O cheiro do mercado abre o apetite. Mas, curiosamente, tal como reparei quando cheguei a Angola, os cheiros são menos intensos. A uns metros das cozinhas já não conseguimos distinguir o aroma da comida do cheiro do pó do chão.

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Fazendo roupa por medida

O mercado está organizado segundo zonas. Os vendedores das mesmas mercadorias aglomeram-se uns perto dos outros. E, a dada altura, damos por nós a ser embalados por um som familiar, daqueles que vem lá dos confins da memória. Um tchuc-tchuc que só quer significar uma coisa, máquinas de costura.

Mestres e aprendizes, velhos uns e muito novos outros, dão ao pedal enquanto fazem sair camisas e calças de panos coloridos. Têm máquinas antigas, de marca Singer ou Oliva, mas também já há algumas recentes, com nomes escritos em caracteres chineses.

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No centro do Dondo ainda encontramos sinais de outros tempos

Como as crianças do Dondo não cabem todas no rio, algumas têm de brincar noutros sítios. Não sei se tiram à sorte, se têm um esquema rotativo ou se lhes foi atribuído o local de brincadeira à nascença, o certo é que os do mercado não invejam os do rio e vice-versa.

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Barbas acabadinhas de pintar

As brincadeiras no mercado são menos espalhafatosas, mas não menos divertidas. No dia em que lá fui, os miúdos pintavam barbas e bigodes com graxa uns aos outros. O Hélder chegou mesmo a pintar o cabelo e ficou a parecer uma gravura egípcia, com umas patilhas muito certinhas.

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Miúdo feliz

A alegria de se verem e reconhecerem na fotografia quase suplantou a alegria de ver aparecer uma bola. Num instante estavam à minha volta e no seguinte corriam e gritavam enquanto tentavam chutar a bola para uma baliza que, suponho, imaginavam entre os alguidares e o sapateiro do mercado.

Vi-me sozinho e regressei ao centro da cidade. Encontrei o Gelson, que se atarefava a regular a sua criação, umas andas feitas com latas.

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Afinando as máquinas

Perguntei-lhe para que serviam as latas que tinha nos pés. Riu-se muito. Eu não percebia o óbvio. Servem para andar, ó tonto! Depois pôs-se de pé e mostrou-me. Deu uns passos para a frente e para trás, puxando com força os pedaços de plástico amarrados às latas.

Disse-me que se chamavam Upé e depois foi-se embora a rir, tão depressa quanto as latas o permitiam.

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Gelson e os seus Upé

É incrível, como uma pequena terra, quase às portas de Luanda, consegue ser tão natural. Aqui sentimo-nos bem!

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “No mercado do Dondo”

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  1. Vivi em Angola desde 1954 até 1964.Vivi algum tempo na Cela e depois no concelho da Gabela.Fui empregado da C.A.D.A.
    Gostei imenso de ver o Dondo.É uma reportagem com fotografias
    encantadoras.Também vivi numa Roça Chamada Monte Belo perto
    da Vila da Conda e vila Nova DE Seles. Como sou Ainda um aprendiz nisto de computadores não sei se consigo enviar esta mensagem,mas gostaria que o Sr. Afonso Loureiro soubesse que
    há gente que aprecia o seu trabalho.Parabéns.

  2. So filho desta cidade que amo de paxao,embora viver muito tempo fora dela.apesar de tudo gostaria que a governacao desta cidade preocupava-se mais com os problemas socias de todos os cidadinos,filhos verdadeiros da cidade. quero lhes dizer que tenho saudades da minha adolescencia principalmente do meu bairro da kissanga dos meus amigos, ze diunga , miguel cabulo,do manuel mulato, da alcina da minha amiga bety e de tantos outros,assim como do meu grande mestre o boneca que era meu secretario da opa.eu so o joca neto do velho pinheiro do bairro da mangueira.

  3. Tambem gostei de ver estas fotos que me faz recordar a terra onde nasci…beijinhos Alda Babo
    Amarante

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