Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

28  06 2008

Duas semanas em Luanda

Faz hoje duas semanas que cheguei a Angola. O tempo já voltou à sua velocidade normal e os fins-de-semana sucedem-se com apenas cinco dias pelo meio. A primeira custou muito a passar. Agora já me sinto mais à vontade para fazer um balanço. Já bebi o suficiente de Luanda para saber o que me espera nos próximos dois anos.

Tenho chegado a casa com a boca a saber a pó. Por enquanto ainda estranho, mas há-de ser normal, porque em Luanda há pó. Pó branco, pó vermelho e pó castanho. Muito. Chega a todo o lado e deixa tudo coberto com uma camada fina de África. As fachadas são cor de pó, as ruas são cor de pó (quando não são feitas só de pó) e os carros ficam cor de pó. Mas é o próprio pó que dá sustento a muita gente. Há uma verdadeira indústria de lavadores de automóveis, desde os mais modestos que cobram 50 ou 100 Kz para lavar o carro com a água que escorre da rua, até aos que compraram um gerador, uma bomba para tirar água do rio e uma máquina de alta pressão e montaram uma lavagem profissional (para os padrões africanos), que pode custar 300 Kz. Em qualquer vau dos rios e valas de Luanda há carros a ser lavados. Até os carros da polícia são lavados neste mercado informal.


Auto-estrada

A imagem que guardo de Luanda não é a da cidade colonial. Essa existe, mas foi absorvida por uma cultura diferente, com necessidades diversas das ocidentais. Os edifícios estão lá e os monumentos politicamente correctos também, assim como alguma toponímia antiga, mas a cidade é outra. A vivência da cidade é outra. Alguns hábitos subsistem, como as árvores com os troncos caiados.

Esta é uma terra de contrastes, onde todos os sentidos são estimulados, com a excepção do olfacto. De facto, a temperatura constante e a elevada humidade disfarçam bem os odores. Se Luanda tivesse o clima de Lisboa aposto que fedia que nem um bode velho. Que melhor contraste poderia encontrar senão o de um monte de lixo que não cheira? Até mesmo o colorido do lixo contrasta com o aspecto baço que o pó dá às coisas e a azáfama das pessoas contrasta com a quantidade de coisas que nunca mais estão acabadas.

Os musseques são Luanda. Sem eles, a cidade já tinha morrido. É lá que vive o motor económico de Angola, pago com muito trabalho e pouquíssimo dinheiro.

Diz-se que há por cá um mercado paralelo que mantém a cidade abastecida. Eu já encontrei dois mercados paralelos a funcionar. Um, que alimenta a cidade à margem dos canais oficiais e outro, mais discreto, que faz funcionar os musseques. São as pequenas indústrias que produzem carrinhos para os entregadores, que fazem tanques de lavar roupa, que transformam pedaços de sucata em pequenos carros para a água.

O mercado de valores angolano também passa pelas ruas de Luanda. Os kinguilas são o equivalente do mercado de rua à casa de câmbios. Trocam dólares americanos por kwanzas. A moeda nacional já está estável e não há uma verdadeira necessidade de usar dólares para nada, mas a sensação que todos têm é que os kwanzas são mais líquidos, que escorrem mais depressa das mãos. Usam-se as notas de 50 e 100 dólares como poupança temporária. É dinheiro que está de parte e que não se pode usar porque não há troco que chegue. Faz-se o câmbio à medida das necessidades. O valor dos produtos mais caros é marcado em kwanzas, embora se pague em dólares (oficiosamente, claro). O câmbio oficial anda perto dos 74 kwanzas por dólar, mas dependendo da quantidade de kwanzas que as casas de câmbio (ou os kinguilas) têm nas mãos, pode-se fazer negócio até 78 kwanzas.

Li, no Jornal de Angola, que perto da Tourada (a tal praça de touros inacabada que se tornou um condomínio fechado) tinham morto um kinguila a tiro para o assaltarem. Dois sujeitos de mota aproximaram-se do senhor, deram-lhe quatro tiros nas costas e fugiram com cerca de 800 dólares. Um pouco mais à frente foram interceptados por populares e um deles foi espancado até à morte. O outro escapou com vida porque chegou a polícia. Os africanos não toleram roubos (excepto quando é aos brancos) e o fim do ladrão é quase sempre uma morte cruel. A notícia era omissa quanto ao destino dos 800 dólares roubados…

Em cada rua há duas ou três oficinas de mecânica, bate-chapas e serralharias, cada uma com a sua máquina de soldar. Há milhares de máquinas de soldar em Luanda. Provavelmente haverá dois pares de óculos de soldador. Quase de certeza partidos.

Uma visão comum em Luanda são uns carros de mão feitos em madeira e com um pneu de automóvel. Os rapazes que os usam são um meio fiável de entregar mercadorias em qualquer ponto da cidade a tempo e horas. À porta das lojas que vendem materiais mais pesados encontra-se sempre meia-dúzia de entregadores. Em cinco ou seis horas atravessam Luanda de uma ponta à outra com até trezentos quilos de cimento, blocos, água e tudo o que possa ser transportado a granel. Como a concorrência é muita, as tarifas são baixíssimas…

A primeira coisa em que se repara quando de chega a Luanda é no seu trânsito caótico, bem ao estilo africano. Depois apercebemo-nos de que quase todos os carros que circulam são táxis azuis e brancos. Os candongueiros fazem parte da paisagem e cometem os maiores atentados automobilísticos para chegar mais depressa que os concorrentes ao seu destino. Têm uma equipa de duas ou três pessoas. O condutor, o cobrador e o mecânico, que é opcional. O condutor ocupa-se de fazer passar a Toyota Hiace por todo o lado e de furar as filas. Têm uma condução muito agressiva e um sexto sentido que lhes permite adivinhar o ângulo de capotamento das carrinhas consoante o número de passageiros. Onde só vemos um talude perigoso, um candongueiro vê uma alternativa rápida para contornar a fila de carros parados. O cobrador trata da porta de correr lateral. Perto das paragens, que são em qualquer lado, abre a porta e grita o destino “éroporto’roporto” (é o destino mais popular, por ter muitos mercados à volta). À saída dos passageiros, recebe o dinheiro, que habitualmente ronda os 100 Kz. Se houver lugares vagos, anda sentado à janela da porta de correr, mas se a carrinha estiver cheia, espeta o rabo pela janela e vai de pé. Caso seja necessário, o mecânico circula à frente, no lugar do pendura. E há muitos candongueiros a precisar…

Apesar de cometerem todas as infracções possíveis e imagináveis ao código de estrada, que fariam os taxistas portugueses parecer meninos de coro, a polícia faz vista grossa. Grande parte das frotas é propriedade de polícias. A única norma que fazem respeitar é a da lotação das carrinhas. Novamente porque grande parte das frotas é de polícias e não se quer concorrência desleal.

Há uns anos houve uma tentativa de regulamentação do sector. Os candongueiros recusaram, porque implicaria pagar impostos e manter as frotas em bom estado (custos, portanto). Fizeram greve. Luanda parou. O governo recuou.

É seguro dizer que em Luanda há uma extraordinária densidade de carros japoneses. A maioria são Toyota. São robustos, fiáveis e baratos. A maioria é trazida para cá através de uma meia-dúzia de egípcios que compram carros em fim de vida na Europa e os trazem para África. São comprados quase a peso por serem antigos, transportados em cargueiros baratos e vendidos caros. Um Toyota Starlet com 15 anos é comprado em Angola por cerca de 5500 dólares. É vendido na Europa por menos de 1000…

Depois há as crianças. Milhões de crianças. Grande parte anda só de cuecas…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

9 respostas a “Duas semanas em Luanda”

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  1. É verdade já se passaram 2 semanas.

  2. ola

    gostei da sua descriçao sobre luanda,tenho um familiar de partida para Luanda.Pode-me dar noticias recentes?
    muito obrigado
    gina

  3. Gina,

    O Aerograma não procura dar a conhecer as notícias mais recentes acerca de nada. O seu objectivo é relatar uma experiência de vida em Angola, nada mais. Procura ser o mais intemporal possível. O que se lê nos jornais ou na agência de notícias angolana espelha a realidade do país e recomendo-lhe a consulta.

  4. ola
    sou angolana e digo que portugal tambem nõ é tão limpo

  5. Pois não, Portugal também não é limpo, mas tive um choque com a quantidade de lixo que encontrei em Luanda.

  6. pois porque não sais dai

  7. Eventualmente…

  8. Amigo,

    Sou angolano de nascimento, brasileiro por opçao e portugues por imposiçao. *desculpe a falta de acentuaçao – o computador e ingles -, e julgo que vc esta a se concentrar no que Angola tem de ruim. Ja observou bem a natureza do angolano, as paisagens que Angola tem etudo o que a so a Africa oferece…
    Emportugal, onde me rotularam de retornado – sem nunca ter ido aquele resto da europa, vi coisas piores do que aquelas que conta. Vi crianças abandonadas ou quase, lixo aos montes e falta de respeito com os imigrantes. Se nao tivessem vendido Angola e abandonado quem la vivia a propria sorte, certamente Angola seria outra. Tiraram a riqueza e tudo o que podiam e agora, depois que enfiaram o rabo entre as pernas – covardes que sao -, ainda querem julgar um pais que tenta se levantar com as suas proprias forças e nao com dinheiro da U.E.

    Tenham vergonha e reconheçam que se Angola esta no estado em que esta, foram vcs., portugueses os culpados. E a minha opiniao. Respeito a sua tambem.

    Aproveite Angola e viva melhor do que em Portugal.

  9. Caro Jorge,

    Comentou um artigo que marcava as minhas primeiras impressões de Angola, depois de muitos dias a trabalhar bem no meio dos musseques. Se der uma vista de olhos pelo resto do Aerograma vai-se aperceber que a minha opinião se foi alterando ao longo do tempo.

    Não me cabe a mim julgar as gerações anteriores, que se regiam por regras diferentes e pensavam de outra forma, mas reconheço que por culpa de decisões políticas da época, Portugal e as suas antigas colónias ficaram em muito pior estado, mas a culpa não se pode atribuir a todos os portugueses. A grande maioria não desejavam esta solução.

    Mas citando as suas palavras «Vi crianças abandonadas ou quase, lixo aos montes e falta de respeito com os imigrantes», podiam muito bem encaixar-se na minha primeira impressão de Luanda…

    Os retornados foram o bode expiatório dos maus resultados das decisões tomadas em 1974 e 1975. Pagaram as favas sem saber porquê. Apesar de tudo, imprimiram um espírito empreendedor a Portugal. Mantêm uma saudade que os liga à terra mãe que é difícil de explicar. Veja-se o artigo Não há quem perceba….

    Mas fique descansado. Aproveitei bem Angola. Conheci o país e as gentes, e fiquei com África no coração.

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