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03 2009

A Memória do Huambo

Uma sensação recorrente que se tem ao visitar muitas cidades angolanas é a da co-existência de duas povoações e dois tempos no mesmo sítio.

Em Luanda nunca deixamos de ter a sensação de que a cidade colonial existe e que partilha o mesmo espaço com a cidade actual. Os habitantes de hoje vivem-na de um modo distinto dos de outrora e, aos poucos, a nova capital vai apagando a antiga Luanda, uma torre de vidro de cada vez.

Noutras povoações, a cidade colonial estava lá, abandonada, acabadinha de entrar em 1975. A cidade africana também estava lá, um pouco a cargo da cubatização que a cidade branca sofreu.

Mas esta sensação desaparece quando se chega ao Huambo. A cidade continuou a ser vivida como cidade e não apenas como um aglomerado de telhados. A cidade evoluíu e ganhou um rosto próprio. Parecido com o rosto colonial, é certo, mas ao mesmo tempo diferente. Nova Lisboa desapareceu. Só há o Huambo. Apesar de terem as mesmas casas e ruas, Nova Lisboa e Huambo não co-existem. A cidade não glorificou nem esqueceu o seu passado colonial. Adaptou-o e tornou-o seu.

O actual Primeiro-Ministro angolano, Paulo Kassoma, e antigo Governador do Huambo fez um trabalho meritório na preservação da identidade da cidade. Manteve os edifícios e monumentos mas, ao mesmo tempo, apagou as marcas coloniais.

Os anos de guerra que mantiveram a cidade isolada contribuíram, por estranho que pareça, para que ficasse preservada. As marcas dos tiros e das bombas não contam. Isso são apenas rugas.

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Símbolo do poder colonial

O Palácio do Governador foi reduzido a escombros. Apenas as paredes exteriores resistiram aos anos de guerra. Em vez de ser demolido e construído um edifício moderno, investiu-se tempo e saber na sua recuperação. Ganhou-se um edifício que respira respeito pelo poder que alberga.

Os brasões e escudos herdados da tradição heráldica europeia foram retirados, e muito bem, a meu ver. O Huambo tem hoje uma sede do governo que respira história, sem recordar os tempos pré-independência.

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Símbolo do poder colonial

Os vários escudos de granito retirados das fachadas foram amontoados num canto da cidade. Não foram tratados com desprezo ou vandalizados. Foram apenas esquecidos. Não fazia sentido que ocupassem ou partilhassem o lugar devido aos símbolos nacionais vigentes.

O facto de se terem retirado alguns dos símbolos do poder colonial não quer dizer que tenham escondido todos. Alguns, por terem significados mais vastos foram mantidos.

Na Praça Agostinho Neto, onde se ergue o Palácio do Governador e quase todos os grandes edifícios públicos, havia uma série de estátuas. Eram do tempo em que a praça se chamava Dr. Manuel de Arriaga. a praça dos primeiros presidentes de cada país, portanto.

Estas estátuas viveram a guerra de perto. Ficaram presas num fogo cruzado de décadas e acabaram por se tornar alvos inglórios.

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Fortaleza

Quando se recuperou a praça, estou certo que ficaram indecisos acerca do que fazer às estátuas de bronze tornadas passadores. Afinal de contas, mesmo que do tempo colonial, eram obras de arte.

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Marcas do tempo

Havia três opções. A primeira, mais simples e rápida, era simplesmente deitar fora as estátuas. A segunda, implicava tapar cada buraco de bala e devolver-lhes o aspecto original, quase que glorificando o passado. Optaram pela terceira via, mantê-las como estão.

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Nem o bronze resistiu

Aooptarem por preservar as estátuas no estado actual, criou-se um monumento aos horrores da batalha do Huambo. As estátuas perderam o seu significado e passaram a ser apenas uma recordação do que foi a guerra.

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Marcas do tempo

Os mais radicais sempre podem olhar para estas estátuas esburacadas e interpretar isto como a perseguição aos brancos que se seguiu à indepedência, mas a maioria das pessoas vai olhar para isto e lembrar-se apenas da guerra.

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General Norton de Matos

Até a estabilização que se fez da estátua do General Norton de Matos mostra que não houve preocupações estéticas quanto à preservação do significado da estátua. Um remendo rude é adequado ao tratamento rude que sofreu.

Estão agora a algumas centenas de metros do seu lugar original, em frente a uma esquadra da polícia e num canto do jardim central do Huambo. Não estão em destaque, como seria de prever, mas não são invisíveis.

Muito depois de se ter tapado o último buraco de bala das fachadas ou demolido todos os edifícios bombardeados, este monumento mostrará que a luta fraticida que assolou angola por quase trinta anos não foi apenas um facto histórico.

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

9 respostas a “A Memória do Huambo”

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. Simples palavras nao traduzem a excitacao de tornar a ver as estatuas a Norton de Matos.
    Sou filho do autor, Euclides Vaz, e esse grande trabalho foi parte da minha juventude.
    1962,,,,tinha eu 12 anos,,,wow, time flies eh ? 58 now, ouch,,,,,,,
    Tivemos conhecimento atraves dum camarada anónimo, do monumento ter sido arreado apos a independencia de Angola, mas apenas tive vista dum recorte de jornal, agora perdido.
    Encontro me de momento , tentando reunir elementos fotograficos sobre a obra artistica de meu pai, o escultor Euclides Vaz.
    Venho portanto, nao só felicita-lo e agradecer lhe pelas excelentes imagens, mas pedir lhe autorizacao para uso das mesmas no meu FLICKR.
    http://www.flickr.com/photos/josesw3/
    Aguardo sua autorizacao.
    Meus cumprimentos.

    José Vaz

    PS:

    Sorry, after almost 40 years in England my Portuguese is absolutely arcaic, aha aha aah
    Great blog by the way.

  2. Assunto estatuas e monumentos antigos coluniais.Acho que os angolanos tem o direito ás estatuas portuguesas,tudo bem! mas daí a colocar remendos e a tratalas mal ai nâo concordo. A minha openiâo é que tudo que é antigo para bem da historia deviam ser conservado.

  3. As estátuas do Huambo não foram deitadas foram. Estão dispostas num canto do jardim central, com alguma dignidade. O remendo que estabiliza a estátua de Norton de Matos não desvirtua a obra e é preferível a uma má recuperação.

  4. Quem deu o nome de Huambo(não Nova Lisboa) à cidade foi Norton de Matos seu fundador. A Estátua deveria estar no seu local original. Em homengem ao fundador seria justiça e não saudosismo colonial bacoco! A história é o que é por muito que se queira negá-la !

  5. É com uma enorme emoção,que finalmente vejo que “alguem” cuida do património do Mestre Euclide Vaz,o meu melhor professor da então ESBAL!há tempos a escola fez uma grande exposição com os trabalhos dos antigos professores,estive cinco anos a trabalhar nesse projecto e tentei tudo para contactar um familiar e nunca consegui…
    e o acaso acontece….
    com imenso carinho ao meu Mestre,

  6. É com uma enorme emoção,que finalmente vejo que “alguem” cuida do património do Mestre Euclide Vaz,o meu melhor professor da então ESBAL!há tempos a escola fez uma grande exposição com os trabalhos dos antigos professores,estive cinco anos a trabalhar nesse projecto e tentei tudo para contactar um familiar e nunca o consegui…
    e o acaso acontece….
    com imenso carinho ao meu Mestre,

  7. Estatua do General Norton de Matos éra um Monumento expetacular foi inaugorada em 1962 onde participei no desfil Militar,nas Comemoração dos 50 Anos da Cidade de Nova Lisboa

  8. É uma alegria enorme ver que há quem se lembre de falar e homenagear o meu tio e professor de Dsenho de Estátua ,no atlier da Calçada de Carriche , Euclides Vaz e foi uma surpresa enorme ver o meu primo José Vaz, que já não vejo há anos , aqui , na procura de dados senão iguais pelo menos semelhantes ao meu .
    Muito agradável também , ler os depoiamentos dos alunos do meu tio .
    O meu muito obrigada a todos
    Maria Manuela Vaz da Rocha Vidal

  9. Não é uma resposta. É um agradecimento e um pedido. Agradecimento a Afonso Loureiro, pelo valioso trabalho descrito neste “AEROGRAMA”. Pedido, porque desejo saber o que for possível acerca das estátuas “MÃE PRETA” e “FLORA ANGOLANA”, que se erigiam nos jardins da ex-Nova Lisboa. Que foi ou é feito delas. Eram obras de autoria de um meu primo, que também deixou outras na capital angolana.
    Agradeço a quem poder dar-me informações.

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