Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

07 2008

As propriedades hipnóticas do leite em pó

Estou há duas semanas em Angola e já não posso ver chineses à frente. Nem me deixam dormir!

Apesar de haver milhares de ruas em Luanda a precisar de reparações urgentes, houve alguém que convenceu o município a refazer as bermas das ruas à volta de nossa casa. Como não se consegue fazer a obra de dia por causa do trânsito, optaram por começar os trabalhos à meia-noite e parar lá pelas cinco da manhã. É uma azáfama que não deixaria envergonhada a rua durante o dia. Olho pela janela e só vejo cabelos pretos escorridos e olhos rasgados. Eu bem queria dormir, mas não me deixam.

Quando abriram a estrada ficaram uns grandes montes de entulho, que retiraram com duas máquinas. A retroescavadora apanhava a terra e os pedaços de asfalto e enchia uma pá carregadora de quatro toneladas que, por sua vez, despejava tudo num camião estacionado ao fundo da rua. A dança das duas máquinas debaixo da minha janela fazia lembrar um rouxinol-dos-caniços a alimentar um cuco.

Esta obra, só feita de noite, tem-se arrastado. Já não há estacionamento em lado nenhum e os poucos lugares que se encontram têm sempre dois ou três controladores a exigir dinheiro com maus modos. Se, durante a noite, a rua é cortada ao trânsito por causa da obra, não faria sentido cortar a rua durante dois ou três dias e fazer tudo de uma só vez? Agora que a obra está no final, foi isso mesmo que fizeram. O planeamento da obra está a ser afinado… A única coisa que falta é mesmo trabalhar durante o dia. A estrada foi cortada mas ninguém trabalha.

Entretanto, depois de uma noite mal dormida graças às buzinas de ar das escavadoras e das pedras a cair nos camiões, dei por mim a fitar o remoinho na caneca onde misturava o leite em pó. Pensava nem sei em quê, mas cheguei à conclusão de que, quando estamos cansados e distraídos, a mente nos leva por caminhos estranhos. Concluí que há quatro escolas para mexer um líquido numa caneca.

A primeira diz que a colher nunca deve tocar nas paredes da porcelana do serviço, que foi prenda de casamento da tia Ermelinda, para não fazer barulho. É a mais educada. Implica segurar na colher entre o polegar e o indicador, mantendo o mindinho esticado e um ar circunspecto. Suspeito que as coisas nunca devem ficar lá muito bem mexidas e isso explica o ar enjoado com que vejo algumas pessoas beber chá depois de o mexerem assim. O vizinho não ouve o clinc-clinc e o açúcar fica no fundo, mas é assim que a Paula Bobone diz que se faz.

A segunda insiste em fazer a maior barulheira possível. O importante não é mexer o líquido, mas sim testar a resistência dos materiais da caneca e da paciência de quem rodeia o agitador. Ao fim de algum tempo, não só o leite em pó ficou bem dissolvido, como se conseguiu fazer manteiga.

A terceira tendência é uma variante da segunda. Consiste em raspar o fundo da caneca com a ponta da colher, em busca do som mais irritante possível. Novamente, o importante não é misturar o conteúdo da caneca, mas sim aborrecer o vizinho.

A quarta forma resume-se a girar a colher dentro da caneca, fazendo-a faz tocar levemente em três ou quatro pontos das paredes, acabando conferir uma certa musicalidade ao acto. Se a força for bem doseada e o ritmo mantido, forma-se um remoinho perfeito que vai trepando pela caneca até quase entornar. O principal objectivo também não é mexer bem o conteúdo, mas sim tentar fazer com que o remoinho suba o mais alto possível sem entornar. Dependendo da perícia, o resultado final oscila entre um líquido bem mexido e um líquido bem mexido com a mesa molhada. Já se deve ter percebido que esta é a linha preferida. É o gene de engenheiro a vir ao de cima.

Depois de se dominar a altura a que se consegue fazer subir o líquido é necessário moldar o remoinho, fazendo-o ficar cada vez mais circular. Fitamo-lo e ele fita-nos de volta. Ele tenta desfazer-se e nós insistimos para o manter no centro da caneca e redondinho. Ele luta e estica-se numa direcção inesperada. Sem darmos por isso, só vemos o remoinho à nossa frente. Nada mais importa senão saber quem tem a vontade mais forte. Passa a ser uma questão pessoal. É este o efeito hipnótico do leite em pó!

Caímos em nós e temos um leite em pó bem mexido, muito sono e vontade de mandar todos os chineses à fava.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “As propriedades hipnóticas do leite em pó”

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  1. Muito boa, esta crónica…

  2. Na realidade os “chinocas” estão a trabalhar no fuso horário deles 😛

    Quanto ao leite em pó, eu já não apanhei essa “moda” quando era pequeno.. mas quando bebo leite com Ovomaltine ponho primeiro o “pó” no fundo do copo e depois misturo apenas com um jacto de leite (daqueles quando só cortas mesmo a pontinha do pacote) e voilá, fica com bolhinhas e tudo 😀

    um abraço

  3. Pobres chineses tentam reconstruir um país (tem apenas os horários um pouco trocados, é só isso).
    Não sabia que para dissolver o leite em pó era preciso tanta ciência. Obrigado pela lição.

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