Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

12  06 2009

Kafkiano

Josef K. veio para Angola. Passou pelas habituais desventuras consulares com que o país brinda quem o visita. A primeira carta de chamada, que vinha endereçada aos Serviços Consulares da Embaixada de Angola, foi recusada. Tinha de ser dirigida ao Consulado de Angola.

Durante um ano trabalhou numa seguradora famosa, num escritório com vista para a Baía de Luanda. Aliás, foi devido à sua experiência com processos complicados que foi enviado para Angola.

Tinha chegado a altura de renovar o visto. Informou-se do que era necessário e dirigiu-se à DEFA. Apareceu lá bem cedo, bem antes de abrirem as portas. Aos poucos, a confusão foi-se instalando. Empurrões e vozes altas a reclamar da lentidão. Um pouco antes da hora do almoço, conseguiu entrar. Pelo meio ainda deu uma gasosa ao segurança, que aceitou dizendo que «só a aceitava para que não julgasse que tinha se negligenciado alguma forma de acelerar o Processo». Esperou que os funcionários que «ainda não tinham regressado do almoço» ou os que «estavam quase-quase a chegar» regressassem. Depois esperou mais um pouco, dando-lhes tempo de pôr a conversa em dia.

Atenderam-no a meio da tarde. Ao primeiro relance, recusaram-lhe o processo. Lamentavam muito, mas era necessário apresentar uma cópia autenticada de uma qualquer certidão obscura. Sem ela, não poderiam dar andamento ao processo. Josef K. bem tentou argumentar que semelhante certidão só se poderia obter em Praga e que em lado nenhum estava escrito que aquele documento era necessário. Foi inútil. A dificuldade estava criada, mas seguramente lhe poderiam vender uma faciilidade…

Recusando-se a ceder a esta táctica, no dia seguinte procurou maneira de obter a certidão. Telefonemas para casa, conversas com amigos e desabafos com conhecidos fizeram-lhe chegar uma cópia do documento pretendido às mãos. Agora só precisava de a autenticar.

Depois de muitas tentativas frustradas, resolveu atacar o problema de outra maneira. Com um carimbo e umas assinaturas pomposas transformou a sua cópia da certidão num documento de ar oficial, que nunca passaria por verdadeiro.

Regressou à DEFA. Perdeu mais um dia, mas apresentou o documento. Foi recusado. O original não serve, tem de entregar uma cópia autenticada pelo Ministério das Relações Exteriores.

No dia seguinte, foi ao MIREX, para autenticar o documento semi-verdadeiro. Esperou a manhã inteira. Foi atendido e explicou o que queria. Não era ali que tinha de se dirigir. O MIREX só autentica depois dos serviços consulares do país de origem lhe autenticarem uma cópia do documento…

Josef K. estrebuchou. Reclamou porque nunca lhe diziam onde devia começar o processo. Só o informavam do passo imediatamente anterior. Aborrecido, foi à procura do consulado.

Chegou perto da hora de fecho, perguntou ao segurança onde poderia autenticar o documento. O segurança disse-lhe logo que tinha de voltar na semana seguinte, porque – apontou para o letreiro na parede – «Autenticações só às Segundas-feiras». Josef K. esmoreceu, mas entrou na mesma, com esperança de se cruzar com alguém a quem explicar a situação. Encontrou uma porta encostada e não se fez rogado. Entrou mesmo, como se fosse da casa. A funcionária no gabinete disse-lhe que já não atendiam, mas ele acabou por lhe explicar que só queria mesmo autenticar aquela cópia para levar ao MIREX por causa da complicada burocracia angolana. Com estas palavras ganhou uma aliada e a funcionária disse-lhe que abria uma excepção. Até abriu outra excepção e fez a fotocópia no consulado. O pagamento dos dez dólares de taxa é que tinha de ser feito no banco da esquina e aí não podia ceder. Os pagamentos têm de ser sempre feitos por transferência bancária.

Josef K. correu até ao banco da esquina e sorriu quando viu que estava vazio. Confiante, avançou até ao caixa, que o olhou nos olhos e lhe disse, com toda a calma:

«Não há sistema…»
«Mas só quero fazer um depósito para o consulado.»
«Não há sistema, não posso fazer nada.»
«Quanto tempo demora até voltar?»
«Depende. Talvez meia-hora, talvez mais…»
«Mas é só um depósito. Só preciso de um talão em como depositei e esse pode fazer à mão.»
«Depois eles não aceitam…»
«Aceitam sim. São só dez dólares. Já alguma vez ouviu alguém dar um golpe de dez dólares?»
«Não sei. Com o sistema, eles confiam mais…»
«Se tiver um carimbo do banco têm de aceitar. Se não aceitarem eu venho buscar o outro, pode ser?»
«Eu faço, mas eles vão recusar…»

Mas não recusaram. E Josef K. conseguiu autenticar uma cópia da sua certidão semi-original. Já podia ir ao MIREX. Mas isso teria de ficar para o dia seguinte.

Logo pela manhã, esperou umas horas até ser atendido. Disseram-lhe que podia autenticar a certidão, mas tinha de fazer um requerimento em papel de vinte e cinco linhas. Estava explicado o mistério de toda a gente ter uma folha azul na mão.

«Onde posso comprar aquele papel?»
«Lá fora, nos miúdos.»

No exterior, tentou regatear uma folha de papel azul e a estampilha fiscal sem sucesso. O preço está tabelado: 150 Kz.

Copiou a minuta para a folha e apresentou o requerimento, depois de mais algumas horas de espera, claro. Assistiu à funcionária conferir a cópia, carimbar, assinar e marcar com o selo branco o documento que tinha sido autenticado na véspera pelo consulado. Logo a seguir, colocou a cópia e o requerimento num cesto ao lado. Josef K. perguntou se já estava. «Sim, está pronto.» Então porque não lho entregava? «Tem de esperar 24h. Está na lei. Amanhã pode vir levantar.»

Bulldozer com árvore no meio
Vítima do Processo

Inconformado, mas resignado, esperou até ao dia seguinte. Levantou a certidão duplamente autenticada e dirigiu-se à DEFA. A confusão do costume no exterior fê-lo pensar que tinha sido boa ideia guardar a senha de atendimento de há uns dias. Acenou-a à frente do segurança que faz as vezes de porteiro e disse-lhe que a menina só o tinha mandado ir fazer uma fotocópia. Foi mandado entrar. Entregou os documentos todos, não deixou de sorrir por ver a sua certidão ser aceite. Não comprou a facilidade, mas as dificuldades foram muitas.

Josef K. regressou a Praga no mês seguinte, onde o esperava um Processo que lhe diziam ser muito complicado. Riu-se à gargalhada. «Venha ele!»

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

12 respostas a “Kafkiano”

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. Gasosa!

    Eu mudaria o titulo para o falsario, contra-feitor, corruptor.

    O documento foi visado apos autenticacao do consulado, onde pelos vistos pagou gasosa pois foi atendido em dia nao proprio para tal. No caso do consulado (pais dos brancos) foi ajudado ja no caso do banco (pretos) foi violentamente contestado mesmo tendo atingido o objectivo sem o sistema que e de certeza portugues e logo suscetivel de falhas como a caixa geral de depositos. Na defa o corruptor bajulou o segurança para que este recebesse a prenda q lhe dava sem interesse nenhum.

    Porque vem se apenas querem maltratar.nos?

    PS: 1 Os governantes deste pais deveriam olhar para estes recados como motivo de dupla preocupaçao, melhorar a qualidade dos serviços prestados e elevar os preços dos emolumentos para todos os actos em que estejam envolvidos estrangeiros por outro lado qualquer denuncia de tentativa de suborno deveria ser severamente punida mesmo com as falinhas mansas q ja nos habituaram os engombeladores da “imaculada” funcao publica.

  2. Infelizmente, sei que esta história aconteceu quase como a contei mas, já que se fala em cores de pele, o visado não era branco. Tomei a liberdade de comparar a burocracia das cópias autenticadas com a opacidade do processo que condenou Josef K.

    A parte da gasosa ao segurança duvido que seja verdade, mas acrescentei-a para que houvesse semelhanças com um conto de Kafka, onde Josef K. tenta subornar um porteiro e este aceita só para que se tenha a certeza de que aquela via está esgotada.

    No banco não foi contestado. No banco esperava-se pelo sistema e não se aceitava um depósito em dinheiro.

    Espero que este pequeno conto não seja encarado como um ataque a Angola, trata-se apenas de uma crítica. Afinal de contas, Pepetela escreveu coisas bem mais corrosivas que foram encaradas como tal.

    Apreciei a forma educada como criticou o que escrevi. Serve de exemplo para os que apenas gosta de insultar.

  3. Nesse aspecto Angola não mudou de há uns 33 anos para cá. Pelos vistos não é só na Física que há Princípios de Conservação… Diria que isso tem constituidoum um dos Princípios de Conservação que tem regido Angola apesar das tranformações que tem sofrido ultimamente. Já o Presidente Agostinho Neto se referia, com ironia, em momento delicado de 1977, aos trabalhadores burocratas.

  4. Afonso…

    Sua crítica se aplica á toda a África portuguesa, e eu sei que você é portugues, mas é uma herança do colonizador, PIORADA pela atitude do colonizado 🙂

  5. Kwata-Kwata, há algo aí na tua mente deturpada que me diz que és apenas mais um angolano “fazedor de nada”, é desses que esse país precisa, até ao dia que dará a volta…mas para trás novamente. Infelizmente áfrica é mesmo assim.

  6. Este criminoso do Josef K. devia ir pra CCL “cadeia central de Luanda” por falsificação de documentos. Onde já se viu isso?!? Apesar das dificuldades e burocracias existente na mangole não se deve infringir a lei. FALSIFICAÇÃO È CRIME

  7. Por vezes quase percebo porque é tão difícil resistir ao pagamento de uma gasosa, só para uma pessoa se ver livre destas falsas burocracias ridículas!!!

  8. Srº Mulumba qro que saibas que sou mto diferente de tí e pelo contrario, um jovem 1000% mangole, amante da minha terra e do meu povo. Actualmente estou na tuga a terminar a licenciatura, dps do mestrado irei dar o meu contributo pra o desenvolvimente da minha terra mãe. ANGOLA… seu ****

  9. Caro Afonso,

    Apreciei muito a sua estória! O Josef K. estava mesmo a precisar de um “Processo” tropical e saiu-se às mil maravilhas.Quem aprende nunca esquece!
    Os meus cumprimentos,
    Elmiro

  10. Aqui, durante anos a fio, perante a dificuldade de resolver muitos “processos”, ouviamos recorrentemente o chavão da pesada herança do fascismo. Aí, será que passados mais de trinta anos, ainda será legítimo falar da pesada herança do colonialismo?!

  11. É uma comédia autentica! Tanta burocracia, tanta complicação.. Sao por essas e por outras que me interrogo se valerá a pena o meu regresso a esse país.

  12. Li Rover,

    Admiro a sua atitude. Todos os dias me deparo com a falta de preparação de muitos angolanos para resolver problemas que deveriam ser simples.

    Este país conta consigo para crescer!

Deixe uma resposta

Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.

« - »