Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

31  07 2009

17-05-70

M.D. nasceu em Vila Salazar, mais ou menos por volta da altura em que a guerra colonial começou. Cresceu, provavelmente, com os militares portugueses estacionados na vila e, em Maio de 1970, ainda miúdo, tatuou a caveira e as tíbias dos comandos no antebraço direito.

Com a independência, a terra onde nasceu e cresceu voltou a chamar-se N’Dalatando, esquecendo o nome que homenageava o Presidente do Conselho do Puto. Com esta mudança veio também a guerra civil e a mobilização para as Fapla. Os quatro anos seguintes, ainda quase criança, passou-os no Sul, repartidos entre a paz de Moçamedes e as batalhas perto da fronteira do Ruacaná e Virei. Não se envergonha de preferir os tempos passados no forte de Moçamedes, longe dos tiros.

Depois de desmobilizado, regressou ao Kwanza Norte sem saber muito bem o que fazer da vida. As fábricas começaram a fechar alguns anos antes e havia poucos empregos. Durante algum tempo trabalhou na fábrica de vinho do Dondo, a alguns quilómetros de casa, mas também essa acabou por fechar. Diz que vai voltar a funcionar, talvez com uvas do Namibe, a terra dos anos de tropa que recorda também pelas vinhas.

Desempregado, regressou à terra e tornou-se lavrador para sobreviver. N’Dalatando, a cidade-jardim, durante o tempo em que esteve ocupada pela Unita, foi-se degradando aos poucos. A guerra não se prestava a esforços de conservação. Depois da paz tem melhorado, acrescenta. Agora está velho e resignado, mas continua a ter de trabalhar a terra com outros velhos resignados.

Veio a Luanda pela primeira vez em muitos anos com mais três vizinhos. Viajaram de ambulância, direitos ao Hospital Maria Pia, sem grande esperança de regressar. Alguns meses depois, só dois ainda faziam parte do mundo dos vivos e ele o único capaz de andar, uma vez que o outro sobrevivente viu as pernas amputadas acima do joelho.

À saída do hospital, descendo a Avenida do Primeiro Congresso do MPLA em direcção à Mutamba, onde apanharia o machimbombo para regressar a casa, foi assaltado por uns miúdos. Levaram-lhe os 2’000 Kz que tinha para comprar o bilhete. Maldiz a cidade, repetindo «Isto é que é Luanda, onde os miúdos roubam os velhos? Isto é que é Luanda?». Lá no Kwanza Norte é igual, os velhos trabalham a terra mas os rapazes só querem roubar ou andar de mota.

Não fossem demasiados anos de lágrimas gastas em amarguras piores, a voz soluçante com que criticava a capital teriam sido acompanhadas de dois fios salgados na cara enrugada. Por momentos, julguei ver o menino que tatuou a caveira no braço à procura de amparo.

Será que este menino faz parte das memórias dos outros?

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “17-05-70”

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  1. Afonso:

    Conheço bem essas bandas! Estudei vários anos (primária e liceu) nessa cidade. Provavelmente conheço esse sr.
    Um abraço pelo seu nobre apreciável trabalho de repórter que me traz novas dessa terra que me viu nascer e tornar adolescente.

  2. Afonso

    tb eu estudei em salazar no colegio norton de matos, vivi em salazar mts anos da minha vida. Tenho dois filhos naturais de zalazar. Amo essa terra, ela faz parte de mim. todos os dias revejo, mentalmente, as ruas e casas de salazar. Conheço cada canto dessa terra. Confeço que preciso dessas recordações para viver, ela e um pedaço da minha pessoa. obrigada

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