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Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

30  07 2009

O silêncio do deserto

Após um ano de Angola, não posso dizer que estranhe as falhas de luz. Na verdade, depressa nos habituamos a conviver com elas, adaptando as nossas rotinas de forma a incluir actividades alternativas. É a prova de que podemos viver perfeitamente sem muitos dos luxos que são tidos como essenciais no mundo moderno.

Numa manhã preguiçosa de Domingo, poucos carros circulam na baixa de Luanda. Sem electricidade, gerador, água ou internet, o mundo torna-se silencioso. As máquinas de ar condicionado não trabalham. A bomba de água não arranca com um sobressalto. O zumbido dos frigoríficos desaparece.

Nestas alturas, todo o bulício do costume, que nos entorpece os sentidos, tem de ser compensado de outra forma qualquer. Quando não há ruído para o manter ocupado, o cérebro inventa novas maneiras de não ser inútil. Pensamos mais. Reflectimos acerca de coisas pouco usuais e descobrimos que a tecnologia moderna tem o condão de nos estupidificar, de nos adormecer num mar de conforto e facilidade. Os estímulos permanentes fazem-nos dispersar por demasiadas coisas ao mesmo tempo, quase todas supérfluas. O luxo embrutece.

Não me surpreende que três religiões importantes tenham nascido algures nas areias dos desertos árabes. A paisagem monótona e uma quase ausência de luxos deixava muito tempo para reflectir no mistério da vida, na essência da alma ou outras coisas menos mundanas.

Vitral da igreja do Caxito
Mistério da fé

Dou por mim a reflectir, não nos mistérios da fé, mas na dependência que temos de coisas desnecessárias. Apercebo-me que sentia falta do silêncio. É uma sensação comparável à que temos quando vamos para fora das grandes cidades contemplar o céu. Os céus estrelados que nos fascinam deixam-nos apreensivos porque não compreendemos como é possível viver sem os contemplar todos os dias.

Volto a pensar nos árabes, que ocupavam parte do silêncio conversando, contando histórias e discutindo coisas que definiram novas teologias. Em vez de assistir, passivamente, ao programa de televisão, não é muito mais interessante participar numa conversa ao serão? As histórias não são contadas apenas pelo contador. O público imagina como foi, vive-as, faz perguntas e contará a sua versão mais tarde. Cá por casa já houve uns serões de insónia com política, anedotas e histórias contadas às escuras no sofá da sala.

Manhã preguiçosa que se tornou tarde preguiçosa, cheia de pensamentos novos e de um silêncio delicioso «BROP-PÁ-PÁ-PÁ! BROP-BROP!»

E pronto, o cabrão da mota tinha de resolver ir afinar o motor para debaixo da janela! Acabou-se o sossego…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “O silêncio do deserto”

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  1. Excelente prosa.
    Transmite sentimentos que, garanto, não são fáceis de passar a escrito.
    São estes momentos que, muitas das vezes, nos fazem reflectir sobre as coisas verdadeiramente importantes que passam despercebidas no meio do corre-corre e do ruído da vida moderna. Só nos apercebemos do barulho quando desaparece.
    Já passei por momentos desses, quando nos apercebemos que muito daquilo a que damos importância, afinal não vale nada.
    Sabe que mais? Eu acho que África tem feitiço. A sua imensidão selvagem, seja no tempo em que a conheci, seja agora, tem essa magia.

  2. Imagine-mos o barulho de aviões mig, carros de combate, misseis, minas, etc. quebrando o silêncio milenar dos desertos dos cuanhamas, dos ganguelas, dos mucuisses, dos mamuilas e bailundos, etc., qual teria sido o stress desses milhões de “não escritores”!

    Será que os as mães já voltaram a olhar para “os meninos à volta da fogueira”? Sem stress?

    Ninguem manda cá para fora o retrato desses DESERTOS?

  3. Talvez haja oportunidade de o fazer.

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