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08 2009

O sotaque dos gestos

Para além das diferenças óbvias entre os vários povos, quer sejam ao nível da cor da pele, formato do nariz, cabeça ou olhos e até mesmo a língua com que comunicam entre si, há pormenores mais subtis que se vão descobrindo serem mais importantes para definir a identidade de um povo que os outros, mais evidentes.

Aprender uma língua nova não é das coisas mais difíceis do mundo. Desde que se queira exercitar o cérebro, aprende-se o suficiente para comunicar, ainda que de forma um pouco hesitante, com outros povos. Com um pouco mais de trabalho, poderemos chegar mesmo a ser fluentes e, cúmulo do orgulho vão, esconder o sotaque que nos denuncia a origem.

Mas há coisas que só se aprendem quando vividas desde sempre. O banho cultural em que somos imersos à nascença molda-nos os gestos e a mente muito antes de nos moldar a língua. Não há coisa mais ridícula que um ocidental convertido ao Budismo. Em teoria, poderá saber tudo acerca do misticismo que rodeia a religião, mas, na verdade, falta-lhe toda a bagagem cultural que apenas se consegue nascendo e crescendo no seio do Budismo.

As gaffes cometidas pelos estrangeiros são tanto mais embaraçosas quanto o grau de conhecimento têm da cultura que os acolhe. Que se recuse um convite quando se devia aceitar ou que se troque o género às palavras é de esperar de um recém-chegado, mas quando o estrangeiro residente usa o gesto errado, gera-se um mal-estar esquisito, porque ele já devia saber o suficiente para não o fazer. Os trocadilhos, os gestos das mãos, o movimento da cabeça e as regras sociais são a segunda língua que também tem de ser aprendida para que se consiga compreender os outros.

Em Angola, apesar de se falar a mesma língua que em Portugal, a linguagem corporal é completamente diferente daquela com que cresci. Alguns gestos que tomamos por universais na Europa, aqui são quase de outro planeta. Para pedir boleia, por exemplo, ainda não vi ninguém esticar o polegar. O gesto angolano consiste em levantar o braço à altura da cara e, com o indicador esticado, desenhar pequenos círculos apontando para o chão, como quem mexe uma pequena panela no ar.

De norte a sul do país, mesmo entre os que apenas falam um das muitas línguas nacionais, há uma série de gestos que fazem parte do código de emoções universal dos angolanos. Mesmo sem falar, conseguem perceber o estado de espírito do outro.

A prova de que a linguagem corporal é mais forte que a língua é que perdura mais. As segundas gerações em cada país começam por perder a língua dos pais, mas a linguagem do corpo ainda se conserva na terceira geração, sob a forma de pequenos gestos ou interjeições. É curioso tentar adivinhar as origens de alguém pelos seus gestos. É quase como tentar identificar um sotaque, mas agora na língua que o corpo fala.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “O sotaque dos gestos”

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  1. Cá estou eu. Bom dia. Fquei viciada nas suas estórias, que se há-de fazer!?
    Essa cidade virou uma Babilónia. Não a da Porta de Deus, mas da Confusão.
    Apesar da angústia que sinto ao lê-lo, no fim, sorrio quase sempre. É inimaginável existir ums cidade-País (Luanda deve ser o retrato do País) como descreve, quando no tempo da outra senhors, com PIDE e tudo, os angolanos eram bem mais PESSOAs.
    Os excertos de vida contados por si, de forma tão simples, são plenos de significado. E que tal um livro de crónicas, lá mais para a frente, no tempo da reforma?
    Até.

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