Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

27  09 2009

O cego que escuta mulheres bonitas

Perto do Hotel Alvalade, há um restaurante concorrido, de clientela variada e preços que, apesar de subirem a cada meia-dúzia de semanas, ainda conseguem fingir que são civilizados. O serviço é demorado, mas não mais que o habitual.

A divisão entre os que têm e os que não têm funciona da mesma forma em todo o lado. No interior sentam-se os que podem pagar a refeição, no exterior passam os outros.

A frente do restaurante desenvolvem-se negócios de lavagem e controlo de viaturas, bem como o original viveiro, com plantas viçosas enfiadas em vasos de plástico. A água que escorre dos condensadores das máquinas de ar condicionado do restaurante é partilhada entre as plantas e a brigada de higiene automóvel.

Um grupo mais discreto e silencioso é o dos pedintes que os seguranças do restaurante mantêm afastado do pedaço de passeio em frente às vidraças da sala de refeições. Mas a porta está quase na esquina e aí já é território não controlado. Dois ou três têm lugar marcado entre os ardinas e os engraxadores de bainhas e meias.

Um dos pedintes é uma figura peculiar. Sempre de camisa azul e barba aparada, senta-se de lado, com uma canadiana muito enferrujada e velha entre as pernas, onde apoia o braço que usa para pedir uma esmola. Nunca o ouvimos dizer uma palavra e os óculos escuros colados à cara fazem adivinhar cegueira. Um pedinte surdo, mudo e coxo merece mais a nossa atenção que os rapazes com duas pernas, dois braços e dois olhos que seguram paredes enquanto bebem cerveja e pedem dinheiro a quem passa…

Quem sobe os degraus depara-se sempre com esta figura silenciosa, de boné enterrado na cabeça e braço na pega da muleta. Ao descer, reparamos que estica a mão, procurando receber parte do troco da refeição. Dizem que tem bom ouvido e distingue quando se abre a porta para entrar ou para sair, pedindo apenas aos que saem. Dizem os mais ingénuos que é graças a este extraordinário ouvido que sabe esticar a mão exactamente na direcção da nota que lhe estendem, nunca falhando o alvo. Sabem os mais avisados que é este ouvido fantástico que o faz virar a cabeça quando passa uma mulher bonita!

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “O cego que escuta mulheres bonitas”

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  1. Hum! Cegos que vêem!
    Também os há cá. Alias, estão em todo o lado.
    Mas, Oh Afonso, não é pelo ouvido que dão pela mulher bonita. É pelo cheiro.

  2. Entre os escapes, o pó e o esgoto que corre ao lado, acho que não há olfacto que resista… deve ser mesmo de ouvido.

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