Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

23  05 2010

O mais-velho do mercado

Desta vez, quem pagou as cervejas foi o próprio Soba, para continuar a conversa com mais calma.

Em frente à banca do sobrinho, onde estivémos a ver as últimas novidades nas estátuas produzidas na oficina familiar, começámos a falar das terras de onde vinham. A família do mais-velho B. era quase toda de M’Banza Congo – antigamente chamada São Salvador do Zaire, fez questão de frisar. Vieram para Luanda pelas mesmas razões que tantos outros e montaram uma oficina no Sambizanga, «um quintal com umas mesas, para se trabalhar à sombra». A madeira vem toda da província, em troncos grandes e depois trabalham-na cá.

Ele e o sobrinho ainda não se habituaram aos hábitos alimentares de Luanda. Aqui até comem as ramas das batatas e das abóboras. Nem mesmo a jimboa, que tem uma folha parecida com o que o mais-velho me desenhou no chão, sabe ao mesmo. A de Luanda é amarga, por causa da água cheia de lixo com que a regam. E não queriam acreditar quando viram gente a comer a gingueja gajaja com jindungo. O meu amigo G. já me avisou que tem um sabor horroroso e que lhe costuma chamar a fruta das gajas, porque só as grávidas é que comem daquilo quando estão com os apetites.

Perguntei-lhe pelos artesãos que conheci no final do ano, que trabalham nas traseiras do mercado do São Paulo. São refugiados das Lundas, de onde veio o símbolo do Pensador, e estão à espera que o Governo lhes dê casa, mas só fazem coisas simples, como os batuques e os pilões, para não morrerem de fome enquanto esperam. Artistas, garante, são os povos do norte. A sul apenas admite a excepção das gentes do Lubango, porque os restantes não sabem esculpir bem.

Pelo que conheço, os povos do sul não sabem trabalhar madeiras tropicais porque não as têm, mas fazem peças escultóricas impressionantes com outros materiais.

Já sentados à sombra e com três Cucas à frente, daquelas em garrafa de xarope, continuou a falar da sua terra. Antigamente tinham até um Rei do Congo em M’Banza Congo, que recebia os impostos do Gabão até ao Congo da Bélgica – «Democrático» corrigiu.

Cuca
Cuca fresquinha

Lembra-se do princípio dos anos sessenta, quando tinha catorze ou quinze anos e havia farras sempre que o Benfica ou o Belenenses ganhavam. O Benfica porque era o Benfica e o Belenenses porque havia um patrocionador da equipa na cidade que dava emprego a muita gente. Lembra-se de quase todas as equipas portuguesas da época, mas garante que é do Benfica, porque antes, essas equipas do Petro e do 1º de Agosto não existiam. «Depois veio o MPLA e acabou-se as farras…» acrescentou, desgostoso.

Gosta de ouvir kuduro, mas deixa a dança para as crianças, com aquela coisa de dar às pernas e aos braços sem jeito. Depois ainda começavam a falar «Olha o mais-velho a dançar kuduro…» Nas festas, gosta é de dançar kizombas, sembas e tarrachinhas. Música boa para dançar é a do Bonga e também a lá do sul, que tem o ritmo certo, o ritmo que pede para puxar a catorzinha contra o peito «Catorzinha, é como quem diz… dançar com uma m’boa contra o peito…»

Enquanto pede mais uma rodada à moça, diz que bebe uma grade de cerveja por dia. Duas ou três de cada vez, porque se beber todas juntas começa a falar à toa e a ver filmes. Mas não são os filmes de agora, dos chineses, com os karatés. São os filmes com o Alain Delon, que o deixou muito triste saber que tinha morrido, os do Cantinflas, porque o Mario Moreno era um artista e os do Trinitá, que comia os feijões com a colher de pau e o Bud Spencer que estava sempre a partir as cabeças dos bandidos.

Naquela altura, eram filmes para maiores de 16 anos e não os deixavam entrar no clube nem mesmo pedindo com jeito. O único remédio era subir às árvores para ver a fita por cima do muro, porque o filme era projectado num ecrã montado sobre o campo de futebol de salão. Havia sempre o problema de serem apanhados pelos polícias, que já lhes conheciam as manhas e os mandavam descer da árvore e os levavam para a esquadra enquanto o filme não terminasse. Mas eles já tinham a lição estudada e o primeiro a descer sabia que tinha de se deixar cair em cima do polícia, para que conseguissem todos fugir no meio da confusão. Outras vezes, aproveitavam um buraco debaixo do muro do clube e entravam. Depois diziam que iam à casa de banho, mesmo ao lado da plateia do cinema, e ficavam até ao fim.

O mais-velho gosta de reviver esses filmes com quem os conhece, mas os amigos da idade dele começam a escassear e contar os filmes da meninice aos mais novos não tem piada nenhuma porque eles não viram, nem sabem como era. Nem a mulher, com 38 anos se lembra deles. Bem procura esses filmes antigos, mas agora já só há dos chineses e dos outros, os pornográficos, que eram proibidos. Ele acha mal que se vendam assim, mas já é velho e os novos têm outras vidas e aprendem outras coisas. A propósito de aprender, lembrou-se ainda de tempos mais antigos, de quando andava na escola e lamenta-se «No meu tempo, as crianças iam para a escola e davam-lhes leite e um pão com manteiga, mas agora, os netos vão à escola do Governo e, se não lhes dermos cinquenta kwanzas para chupar um gelado ou comer um pão sem nada, passam fome.»

Calhou em conversa falar de tabaco e de haver poucas pessoas a fumar. Garante que há muitas, mas «não fumam a toda a hora, como os chineses, que devem fumar dez maços por dia». Fumam muito e trabalham muito, mas não gosta deles, que vieram tirar os trabalhos todos aos angolanos. Quando passam pela banca, manda-os seguir para outra. «O Zé Dú é que gosta de chineses. Eu não.»

Mais-velho fumando cachimbo
O mais-velho a fumar

Continuando a conversa em torno dos vícios, disse que tem saudades do vinho de barril, daquele que se tirava com a torneirinha, mas agora já não há. O de pacote não sabe ao mesmo e é mais caro. Lembra-se de quando se mudou para o N’Zeto, alguns anos depois de ver os filmes pendurado nas árvores, e dos pescadores que voltavam do mar e paravam na loja para comprar meio litro de vinho por meio tostão, porque na altura tudo se comprava nas lojas e um escudo valia muito.

«Queria-se farinha, ia-se na loja. Queria-se sabão, ia-se na loja. Queria-se vinho, ia-se na loja. Tudo na loja. Não era como agora, que se tem de ir nos mercados das esquinas. Era tudo na loja. Só a fruta se comprava fora.»

A propósito do dinheiro dessa altura, enumera algumas moedas, como quem imagina o que comprava com elas, mas quando fala em vinte escudos, até se inclina para trás com os olhos bem abertos para dizer que era «muuuito dinheiro!». «E cinquenta escudos era tanto, que se encontrassem um rapaz de catorze ou quinze anos com uma nota de 50$00, levavam-no para a cadeia até lá ir o pai dele explicar de onde tinha vindo todo aquele dinheiro…»

Como nos vê a beber devagarinho, diz que isso se cura bem com pau-de-cabinda, que dá força em tudo, até no beber cerveja. De vez em quando surpreende a mulher, mais nova trinta anos, quando chega a casa e lhe pergunta «Diz que o pau de cabinda é bom para dar força. Queres experimentar e depois ir no quarto ver se faz efeito?» Ri-se e garante que ela gosta da diferença!

(nota: correcção da ortografia de gajaja em 05/06/2013 – fonte blog Angola – Debates e Ideias, de Gociante Patissa)

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

6 respostas a “O mais-velho do mercado”

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  1. Olá Afonso
    as peças mais bonitas de artesanto recente que vi em Angola são dos artesãos do Zaire. Aliás na feira de Benfica muitos são do N`zeto (antigo Ambrizete) ou de Tomboco. Tenho a sorte de em 2006 e 2007 ter visitado “oficinas” de artesãoes nesses locais. E é muito bonito vê-los pegar num tronco e, numa longa dança como que enamorados transformarem esse pedaço de pau numa obra de arte….
    abraço
    FernandaR

  2. Em àfrica os “mais velhos” são respeito e sabedoria.

    Este “mais velho” ainda se lembra do tempo em que tinha 16 anos, e pelo que me parece , com alguma saudade…

    Afonso ,estes relatos são o “outro lado da moeda” que nestes tempos ninguém quer ver…com honrosas exepções…

    Rui Rodrigues

  3. Às vezes leio os seus artigos e penso:
    – Mas há quanto tempo é que este “miúdo” lá está, para já ter tanto para contar!

  4. Numa conversa de quintal aprende-se muito mais do que a ver Luanda da janela do escritório…

  5. a minha grande angustia é quando for a banda e ja nao houver nos quintais muitos amigos da idade do mais velho , pois das historias que contou posso garantir que era mesmo tudo assim, filmes do trinita , cantinflas , da loja que vendia tudo e até de farmacia servia , dos putos com 50 escudos levados aos pais ?? do vinho que ja nao sabe tao bem
    so me resta uma consolacao é saber que a velha cuca ainda continua com a garrafa charope , pois e nessa garrafa mesmo que a quero voltar a beber quql heinken qual carlsberg qual que cuca sempre a eterna cuca.
    ps so do pau cabinda é que nao sei nada nunca precisei rsrsrsrsrsrsr
    kandados

  6. Há muitas histórias que passam de pais para filhos, segundo as regras da tradição oral, tão importante nesta terra.

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