Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

08 2008

Guerra de cobardes

À medida que me afastava da costa de Benguela, subindo lentamente para os planaltos da província e penetrava no que foi uma das frentes mais importantes da última guerra, começou a descer um cacimbo sobre tudo. Não era só o cacimbo físico, com as brumas que escondem os montes e as estradas. Era também um cacimbo espiritual, que embrutece as pessoas na sua relação com a terra. Numa terra com paisagens tão grandes que nem cabem nos olhos e muito menos em descrições justas por não haver palavras tão abrangentes, nem sei bem como descrever a sensação de ver um horizonte quase infinito ser subitamente amputado. Sim, amputado. Esta é a palavra correcta. De que outro modo posso explicar o que significa aquele muro invisível sinalizado apenas por um pequeno e triste letreiro branco e vermelho que anuncia a terra de ninguém?


Alto!

São apenas duas pequenas palavras que nos roubam tudo. Toda aquela paisagem está do lado de fora do nosso universo. Não lhe podemos tocar, não a podemos deixar entrar em nós. É apenas uma miragem. Uma miragem particularmente perigosa por ser muito real e nos seduzir com o fruto proibido.

As gentes que convivem com este drama já se habituaram a ter áreas vazias na paisagem. São locais cuja distância física é minúscula, mas ficam tão longe… Os seus mapas mentais apresentam vastas áreas em que se poderia escrever Hic Sunt Leones, como nos mapas romanos. Nas serras angolanas ficamo-nos por um Hic Sunt Minae.


Cuidado


Atenção

A toda a volta da cidade há marcos brancos a indicar zonas livres de minas, com o símbolo da The Halo Trust. Ao longo das estradas vão aparecendo avisos acerca dos progressos e dos cuidados a ter durante a viagem.


Zona segura

A caveira que aparece desenhada nalguns avisos mostra um sorriso sarcástico que não percebemos ser para dar um ar simpático àquele crânio de olhos vazios ou a vangloriar-se pelas minas que lá deixou…

Mas até mesmo nas zonas minadas há trilhos usados para aceder às lavras. Não convém pisar fora do caminho, não vá ficar lá uma perna ou uma criança.


Um pé atrás do outro

Em todas as guerras, quem fica no meio é que sofre. Mas na guerra de minas, revestida de camadas espessas de hipocrisia e egoísmo, os únicos que sofrem verdadeiramente são os que nunca tiveram nada a ver com as motivações da guerra. Quem coloca as minas fá-lo sempre em terra alheia porque o seu quintal é sagrado. Colocam-se minas por interesses estratégicos, por represália ou só porque sim. Paga-se um sentimento de segurança militar com os pés, as pernas e as vidas de quem da terra tirava o sustento e agora colhe a morte.

Uma vez minada, uma área passa a ser a terra de ninguém. Os inimigos não a vão reclamar, com medo de perder forças. A localização das minas vai sendo esquecida à medida que o tempo passa e até mesmo os ocupantes perdem acesso à terra que queriam sua. Os lavradores passam a arriscar a vida sempre que tentam cultivar a terra dos seus antepassados.

A localização de uma única mina vai-se diluindo com o passar dos anos e os poucos centímetros perigosos iniciais acabam por crescer e tornar suspeitas áreas imensas.


Visão recorrente

Mesmo nas áreas marcadas como seguras paira no ar a pergunta “E se deixaram escapar alguma?”. Damos por nós a procurar instintivamente as pegadas de quem nos antecede, com a esperança de que isso nos salve de um perigo amplificado pela dúvida e pela imaginação.


Zonas seguras, acho

Aldeias inteiras sucumbiram à ameaça das minas. Com as lavras interditas, as estradas cortadas e os caminhos sempre sob suspeita, as casas acabaram por ser abandonadas. Entre perder a casa ou um membro, a escolha é simples.

Até mesmo os Caminhos de Ferro de Benguela pereceram às minas, estrangulados e dominados por pequenas caixas enterradas.

Mas a guerra de cobardes não se faz só com minas, faz-se também com a destruição de pontes e estradas, com a demolição de infra-estruturas essenciais como centrais eléctricas ou depósitos de água ou linhas de comunicação.


Deita-se a ponte abaixo e mina-se as margens do rio

O que define este tipo de guerra é que as consequências de todos os actos, pouco ou nenhum efeito têm sobre as forças do adversário, mas são devastadores sobre as populações das áreas ocupadas. Aquelas que o ocupante deveria proteger e acarinhar…

O pior é que quem alimentou a guerra, fornecendo meios para que as partes em conflito pudessem continuar a lutar em prol de um sonho de hegemonia imperial de uma qualquer super-potência, nem se preocupou com o que se passava cá. As minas estão longe, lá na África e os pés em falta são de gente sem dinheiro e da cor errada. Tanto sofrimento só para decidir quem bebe vodka e quem bebe cola.


No fim do horizonte

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “Guerra de cobardes”

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  1. Triste realidade, as minas, que continuam a matar muitos inocentes.

  2. Bem vindo… Inteirinho com o people gosta!

    Props Nigga!

  3. Afonso,
    Sensacional o blog. Seu texto é brilhante e, imagino, você já está preprando um livro com todas essas experiências.
    Grande abraço

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