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27  05 2010

Macanga do Marufo

No planalto entre Porto Amboím e a foz do rio Longa conheci mais-velho Macanga Ventura, xará do seu bisavô e cheio de vontade de conversar. Para além do nome, partilha com o seu antepassado a velha casa de paredes de terra vermelha, cujo telhado de chapa é inovação recente, e também a profissão, produtor artesanal de Marufo.

Marufo é a bebida alcoólica obtida a partir da fermentação de seiva de palmeira e, neste pedacinho de Angola, apenas as garrafas de plástico em que é vendido fogem à tradição. Macanga faz como aprendeu com os seus mais-velhos e os seus filhos hão-de continuar a tradição. Hoje estava sozinho, com o resto da família no hospital de Porto Amboím. Uns doentes e outros a fazer companhia.

Macanga Ventura
Macanga Ventura

Tive a sorte de me cruzar com ele no momento em que tratava de uma palmeira junto à estrada. Parei e perguntei se me explicava como se fazia o Marufo. Orgulhoso de poder mostrar o seu saber, escolheu até os ângulos das fotografias, para que tudo ficasse perfeito. Mostrou-me as suas ferramentas. Resumem-se a duas facas muito usadas, um anel de corda de folha de palmeira e um pequeno martelo de madeira dura.

Fazendo um novo golpe
Preparando um novo pé

Todos os dias trata de cinquenta Cassoneiras, as palmeiras do marufo, e cada uma tem de dois a seis pés. Ocupam uma área grande, desde este lado da estrada até à casa onde mora, quase lá no horizonte. É uma terra pobre, de solo arenoso onde apenas as palmeiras e alguns arbustos espinhosos crescem isolados. A erva secou há muito e água é coisa que só no Verão abunda. O pó claro que se levanta a cada passo contrasta com os riscos negros deixados pelo carvão da casca das palmeiras, que são queimadas para a limpar dos espinhos grossos que se espetam até nos pés mais calejados.

Ferramenta
Martelo de madeira para cravar as estacas

Com uma faca afiada corta-se o topo de cada pé da palmeira, expondo o cerne de onde começa a surgir um líquido transparente. Depois do golpe preparado, algumas folhas de capim dobradas levam a seiva para uma garrafa com muito pó colado. Duas pequenas estacas são marteladas contra as paredes do buraco para segurar o capim no lugar. Esta tarefa é efectuada ao final da manhã e a meio da tarde, para que a seiva não pare de correr.

Recolhendo a seiva
Recolhendo a seiva

Ao fim de algumas horas o golpe seca e é necessário cortar uma lasca fininha do topo para que volte a correr. A palmeira é produtiva durante algumas semanas, até que o pé seca definitivamente. Nessa altura espera-se que brote um novo rebento, que se deixa crescer até ao tamanho apropriado, altura em que é queimado e explorado.

Recolhendo o Marufo
A colheita

As palmeiras mais produtivas reconhecem-se à distância, com moscas e abelhas a rondar os golpes. Os muitos cabelos brancos de Macanga dizem que já perdeu o medo das ferroadas enquanto enxota os insectos e sobe pelo tronco para verificar as garrafas.

Acabada de colher, a seiva da palmeira é transparente e muito doce. Ao fim de algumas horas, começa a fermentar e torna-se uma bebida leitosa ligeiramente alcoólica um pouco mais azeda. Macanga vende-a em garrafas de água que pendura numa corda feita de folhas de palmeira, tal como o cinto que usa para trepar às árvores mais altas. Mantém as garrafas destapadas porque, enquanto fermenta, o vinho de palmeira produz muito gás.

Depois das últimas palmeiras da manhã tratadas, deixei-o na sua sombra ao pé do expositor de marufo, esperando pela altura de recomeçar.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

12 respostas a “Macanga do Marufo”

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  1. Excelente fotografias, parabéns

  2. Excelente artigo.

    Resta acrescentar que o marufo ou maluvo (malavo em quicongo) só se bebe enquanto está a fermentar. À medida que a fermentação avança, esta bebida vai ficando cada vez mais amarga, até que chega a um ponto em que já ninguém consegue bebê-la, de tão amarga que fica. Então só serve para deitar fora. Como é evidente, procura-se consumi-la toda antes que chegue a esse ponto.

  3. Lembro-me de ver cada “piruca” de marufo!!!

  4. O marufo fermenta até ficar vinagre, mas o Macanga dizia que gostava dele bem amargo. Pelo brilho nos olhos quando falava nisso, quase aposto que o que não é vendido não se estraga.

  5. Estive em dezembro de 2010 na barra do Dande, em Angola, e tive a oportunidade de saborear esta deliciosa bebida. Parabéns pelo ótimo artigo, muito didático.

  6. Dos sabores de Angola o Malavo, como era conhecido no Quimbele é o único que não conheço, pois era muito pequena para o poder provar (com muita pena minha). Os meus pais adoravam um copinho de Malavo ou Marufo.

  7. Não seria mais tipico e higiénico fazer a recolha do malavo em outro pipo de vasilha, em vez de uma garrafa de plástico?
    Em que é que era feita, antes de haver plástico?

  8. Seria sim, mas as garrafas de plástico são cómodas, baratas e estão por todo o lado. As vasilhas tradicionais, quer sejam feitas de madeira ou barro são mais frágeis e difíceis de obter. Compreendo que o Sr. Macanga Ventura use as garrafas de água para recolher e vender o marufo, mas desconfio que preferiria outro vasilhame se para tal houvesse possibilidade.

  9. Nasci no mucaba bebia de vez enquando malavo ,hoje moro no Rio de Janeiro , tenho muitas saudades de tudo . Gostaria de saber se no Brasil existe essa palmeira , se há extração da mesma . Espero resposta .

  10. ola boa tarde, gostaria de saber se só tem essa palmeira na afria ou em outro paises tem tanbem ?.

  11. sou brasileiro.

  12. Há em muitas regiões do mundo diversas espécies de palmeira usadas para a produção de bebidas alcoólicas a partir da sua seiva, incluindo México e Chile.

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