Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

23  12 2010

A tradição já não é o que era

Por esta altura, todos os anos, o talho do bairro costuma oferecer calendários de parede aos clientes. É habitual terem mais do que uma versão, de forma a agradar todas as sensibilidades, porque aquele talho é frequentado não só pelas septuagenárias que compram meio peito de frango e uma isca, mas também pelos trolhas e serralheiros que encomendam febras e entremeadas aos quilos para o almoço.

O calendário com a cena pastoral, de cordeirinho nas ervas tenras e montes alpinos, rodeado de queijos e frascos de compota é oferecido à clientela feminina com mais de oitenta primaveras. Às gerações mais novas calha o que tem o bébé, ou cachorrinho, para apelar ao instinto maternal ou vontade de ver os netinhos.

Mas havia sempre um tipo de calendário reservado ao gajo da obra ou ao mecânico da praceta, que era entregue no canto do balcão com um piscar de olho. Invariavelmente, era pendurado mesmo por cima da bancada de trabalho, ao lado dos calendários dos anos anteriores, que lá ficavam até o Sol desbotar definitivamente as mamas da senhora encalorada que se espraiava sobre o rectângulo de papel a dizer «Janeiro – 1987 – Fevereiro» – não havia necessidade de mudar a página do calendário, porque servia apenas para alegrar a loja.

Este ano pude entrever um certo ar de desilusão quando o pedreiro da obra em frente recebeu o calendário e, curioso, deu uma espreitadela antes de sair. Foi surpreendido, não pela moça de fartos seios, sorriso rasgado e pouca roupa do costume, que poderia assegurar a qualidade das carnes do talho pelo ar saudável que demonstrava, mas por uma fotografia em sépia, melosa demais até para as reformadas que têm na parede da sala um retrato do Marco Paulo em ponto-cruz. Acredito piamente que, não fosse estar o talho cheio de gente, o talhante teria ouvido uma reclamação em vernáculo redobrado.

Não sei se é da crise ou do fim da tradição, mas o certo é que algo está mal quando o talho deixa de oferecer calendários de fulanas com as mamas ao léu e carneirinhos bucólicos, para agradar aos diferentes cliente, e opta por um que não agrada a nenhum… pior ainda, onde vão os mecânicos encontrar quem lhes forneça a companhia feminina do próximo ano. A deste ano começa a ficar azulada e, sinceramente, já estão fartos de a ver sempre com o mesmo sorriso. Ainda por cima, toda a gente sabe que oficina sem estes calendários «típicos» não é de confiança – é sinal que o mecânico tem pouco apêgo à casa.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “A tradição já não é o que era”

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  1. Ainda assim, é Natal. Parco em mamas … mas é Natal.
    Um Feliz Natal para si, são os meus sinceros desejos, que o resto… não há-de faltar

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