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15  03 2011

A frente ribeirinha (dos ricos)

Lisboa nada seria sem o Tejo, que a abraça e molda desde tempos imemoriais. Foi o rio que ditou a sua História, e é ele que hoje lhe empresta a luz indiscritível que prende os aguarelistas aos miradouros e os fotógrafos aos constrastes dos telhados e azuis do céu.

Noutras épocas, o rio foi a porta da cidade, com caravelas a partir para terras distantes e as faluas do Tejo a trazer gentes e carga da margem oposta. Hoje quase só navegam as das memórias dos mais velhos ou as poucas resistentes na margem sul, usadas em passeios turísticos. E se o Tejo era a porta de entrada, o Cais das colunas era a sua passadeira vermelha, como aconteceu na visita da Rainha Isabel II.

Não é de estranhar que toda a costa da cidade se tenha convertido num longo cais de mercadorias. Quem não vivia ligado ao rio apenas o podia apreciar nalguns pontos. O resto fazia parte do motor da cidade.

Com a inauguração da ponte sobre o Tejo na década de 1960 e a construção de cada vez mais estradas, a importância do Tejo na vida da cidade foi diminuíndo. O porto de Lisboa passou a receber quase exclusivamente mercadorias do estrangeiro e muitas zonas ao longo da margem foram ficando esquecidas, abandonadas e decrépitas.

Alguns projectos de revitalização transformaram estas áreas em jardins à beira-rio. A zona industrial oriental foi reabilitada para a Exposição Mundial  de 1998. O espaço entre a doca de Alcântara e o Museu da electricidade tornou-se um jardim, dando continuidade ao da Torre de Belém e Mosteiro dos Jerónimos, permitindo um passeio de alguns quilómetros muito agradável.

Como quase sempre acontece, estes projectos "para todos" acabam por se transformar em projectos "para alguns". A devolução do Tejo à cidade terminou quando se construíu um horroroso e milionário mastodonte de mármore, qual tapume em frente ao Museu de Marinha – o Centro Cultural de Belém (CCB). Mais tarde foi a Agência Europeia de Segurança Marítima a nascer no Cais Sodré e a esconder mais um pouco do rio. Mais recentemente, foi o centro Champalimaud a crescer junto às ruínas na lota de Lisboa, desalojada para local incerto sob pretexto de uma hipotética regata internacional que nunca se chegou a realizar. Na mesma óptica, chegou-se a ponderar demolir o Museu de Arte Popular e libertar o espaço para um hotel.

Tapume CCB - Berardo
Algures lá atrás há um planetário e um museu

Quem atravessa o Tejo em direcção à Trafaria e se lembra de voltar os olhos para Belém tem um choque. De um lado, os Jerónimos são o pano de fundo do tapume CCB, adornado com o símbolo da Fundação Berardo. Do outro, a Torre de Belém passa a ter como moldura o Centro Champalimaud. De um momento para o outro, a zona ribeirinha foi devolvida não à cidade ou aos seus habitantes, mas apenas aos ricos.

Centro Champalimaud
Pano de fundo curvilíneo

Quanto ao CCB, pouco mais há a acrescentar ao que foi dito nas últimas décadas, mas sobre o Centro Champalimaud pouco se tem falado. Há outras preocupações na vida das pessoas. A forma como foi instalado em terrenos do Porto de Lisboa e o enquadramento da arquitectura do edifício com as estruturas existentes, apesar de não afectar o mérito do projecto científico, não deixa de nos fazer pensar que o dinheiro resolve todos os problemas de consciência.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “A frente ribeirinha (dos ricos)”

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  1. Há muito que não vou para essas bandas. Trabalhei 30 anos na baixa Lisboeta e palmilhava muitas vezes a zona ribeirinha, num total abandono, um cheiro insuportável, a 24 de Julho um pavor para não falar do Cais do Sodré e muitas vezes pensei “na precária intervenção da Câmara”.
    Vieram as obras a que te referes, que melhorou a zona para quem passa ou passeia pelas ruas, mas que piorou a vista quando se atravessa o Tejo.
    Para ricos é o teu título mas todos podemos disfrutar gratuitamente de jardins de zonas pedonais, da limpeza de zonas degradáveis, de exposições e que continuem a trabalhar na Fundação Champalimaud com os nossos cientistas e outros.

    Poderias dizer quehaveria outros locais, claro que sim…mas outros foram edificados que nos custou milhões e ainda estamos a pagar…graças à parvalheira da Expo e do Euro 2004.

    Também te posso dizer que tenho imensas saudades das vistas obtidas na linha férrea que tinha de Sintra a Lisboa e hoje é um pavor…incluindo a estação do Rossio.

    É o que temos…daí fugir de Lisboa porque parece um queijo de mil buracos onde o que cai de podre faz paredes meias com edificações…aí sim para ricos!

    É a minha modesta opinião e desculpa a extensão!

  2. A freguesia do Castelo, conhecida pelas suas casas a cair de velhas é, curiosamente, a que rendas mais altas tem, à custa de alguns apartamentos de luxo construídos nos palacetes antigos.

    Obviamente que as obras ao longo do rio recuperaram muitas zonas degradadas, mas pelo meio houve projectos estranhos, mal enquadrados. Na minha última travessia do Tejo, em direcção à Trafaria, reparei que os principais monumentos da Lisboa das Descobertas estão emoldurados por edifícios patrocinados pelas grandes fortunas.

    O CCB, elefante branco de mámore, só sobrevive graças à Fundação Berardo. O Centro Champalimaud tem arquitectura desenquadrada. Uma localização diferente para o CCB (decidida há 20 anos) e um projecto ligeiramente diferente do centro de investigação (decidido há 5 anos), podiam ter tornado a cidade ainda mais bonita.

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