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10  05 2011

Entretanto, em Berlim

Em 1989 terminou a Guerra Fria. A linha da frente, devidamente assinalada com um muro de centena e meia de quilómetros, passava por Berlim e serpenteava por entre os bairros e canais, dividindo a cidade em duas.

Desse muro de má memória resta uma secção à beira do Rio Spree e uma linha no chão que marca a sua posição junto da Porta de Brandenburgo. O resto foi transformado em entulho, que é agora vendido em pedacinhos colados em postais turísticos quase sempre pirosos.

Antes de se tornar a frente da Guerra Fria, Berlim foi também a última frente europeia da Segunda Guerra Mundial. Nos últimos dias de Abril de 1945, o centro da cidade foi conquistado rua a rua às últimas forças alemãs fiéis a Hitler por americanos, ingleses, franceses e russos. Passadas mais de seis décadas, as marcas dos tiros ainda são visíveis em quase todos os edifícios monumentais.

Cicatrizes da guerra
Museu Pergamon

Nota-se que há uma preocupação em não esquecer a História. Reconstroem-se as pontes e as casas, mas não se apagam por completo as marcas da destruição e, um pouco por todo o lado, pequenos monumentos prestam homenagem silenciosa às várias vítimas das guerras – os homens, as ideias e as cidades. Nas primeiras categorias, os mais significativos são o memorial às vítimas do Holocausto e a biblioteca vazia para dentro da qual se espreita por uma janela no chão em frente à Universidade Humbolt, que assinala o local onde se queimaram os livros proibidos pelo Terceiro Reich.

Ruínas do parlamento
Velho parlamento

O memorial à destruição da cidade é mais emblemático. É o velho edifício do parlamento, cujo incêndio de 1933 serviu de pretexto para a suspensão da constituição e consequente subida ao poder de Adolf Hitler, é também uma memória da guerra. As suas ruínas ficaram numa zona de ninguém, a fronteira entre os sectores americano e russo, numa situação incómoda e, a partir de 1961, passou a ter o Muro a poucos metros das traseiras. Com um parlamento instalado em Bona e outro na Embaixada da União Soviética, ficou abandonado durante quase cinquenta anos. Foi reconstruído depois da queda do Muro.

Nova arqutectura
Novo parlamento

No tempo das duas Alemanhas, os filmes de espiões tinham passagem obrigatória pela cidade, e quase sempre faziam menção ponto de controlo à saída do sector americano da cidade, o Checkpoint Charlie. Hoje resta o sítio. O pequeno edifício do posto de controlo foi colocado num museu e, dizem, a famosa placa branca com letras pretas que o assinalava foi roubada durante a noite. Uma nova marca o sítio. Mas qualquer berlinense sabe indicar como lá se chega.

A adaptação dos alemães orientais ao capitalismo foi fácil, contou-me um amigo que cresceu na metade socialista da Alemanha. O difícil foi perder velhos hábitos, como da primeira vez a seguir à reunificação em que foi ver uma partida de futebol ao lado ocidental. Confessou que todos os berlinenses orientais, como ele, não repararam nos lugares sentados e ficaram de pé, como sempre tinham feito.

Para além destas pequenas diferenças de hábitos, há ainda pormenores na cidade que nos relembram ter havido décadas de separação. Os próprios semáforos para peões podem ajudar a perceber se estamos na parte ocidental ou oriental da cidade. No lado ocidental usam-se os sinais estilizados do código de estrada internacional. No lado oriental voltaram a ser instalados os antigos sinais, desenhados para que fossem facilmente percebidos até por crianças, em 1961. Grande parte não são originais, mas sim fruto de algum revivalismo da iconografia da RDA.

Unter den Linden, Ampelmann
Ampelmann oriental

No geral, as diferenças entre as duas metades da cidade não são hoje tão evidentes. Os centros comerciais com as lojas iguais às do resto do mundo ofuscam e escondem a arquitectura característica da RDA, como o centro de congressos e o colossal armazém socialista, que agora vende bens de consumo para capitalistas, parecem pequenos e antiquados ao lado das torres de vidro da nova era. Apenas a imensa torre de televisão com 368 metros de altura resiste orgulhosamente no centro da Alexander Platz. Acede-se de elevador ao restaurante giratório instalado a 207 metros de altura.

Fernsehturm
Atrás da Igreja de Santa Maria

Sentado num banco alto junto da porta, o ascensorista de cabelos brancos repete, mecanicamente e com a voz cansada, que se sobe a seis metros por segundo, que a viagem demora pouco mais de meio minuto e a saída é a esquerda, obrigado. As últimas palavras são mais difíceis de perceber porque toda a gente, excepto o ascensorista, se queixa dos ouvidos.

Mas há mais coisas curiosas acerca deste monumento. Segundo parece, a ideia da torre partiu de um dirigente socialista que já anteriormente tinha construído uma estrutura semelhante em Leipzig, mas que o tinha feito no lugar de uma igreja que mandou demolir, de acordo com a sua ideologia anti-religiosa. A torre de Berlim ficaria também no lugar da Igreja de Santa Maria, o pequeno edifício de tijolo vermelho que se situa a poucos metros da base da torre, escondido atrás de algumas árvores, mas a contestação popular, algo inaudito na Alemanha Oriental, fez com que se preservasse a igreja e a torre não dominasse por completo a Alexander Platz.

Para além desta história atribulada, a forma dos painéis que revestem a esfera do restaurante e miradouro reflectem a luz do Sol sempre como uma cruz brilhante, o que levou alguns alemães a dar-lhe uma alcunha curiosa, inspirada no nome e na anti-religiosidade do dirigente socialista – esta é a Torre de São Mateus.

A cruz de São Mateus
A cruz de São Mateus

Deste que é o mais alto edifício alemão, a vista sobre a cidade é magnífica, embora fiquemos sempre com a sensação de que umas colinas aqui e ali lhe dariam muito mais graça. À semelhança de tantas outras grandes cidades europeias, é completamente plana. Os rios sinuosos que atravessam a cidade apenas reforçam a ideia.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Entretanto, em Berlim”

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  1. Esta incursão histórica para assinalar o meio século do muro está excelente! Os meus parabéns, Afonso… e cumprimentos.

  2. Também gostei imenso de ler! Parabéns!

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