Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

15  07 2011

A cabeça de São Gonçalo (primeira parte)

O presente artigo, por ser muito extenso, foi dividido em várias partes. Esta é a primeira.

As águas calmas do Douro escondem um rio muito fundo e perigoso e as barragens que o tentam domar apenas incutem uma falsa sensação de segurança. É o terceiro maior rio da Península Ibérica, alimentado por uma bacia hidrográfica que se estende de Soria ao Porto e de Verin à Guarda.

Ao contrário do Tejo, que se pode espraiar pelas planícies do Ribatejo quando chove muito, o Douro corre encaixado num vale profundo e é alimentado por muitos afluentes importantes e qualquer tempestade fora do normal fará com que o seu nível suba, imparável.

As cheias do Douro marcaram a vida de todas as povoações ribeirinhas ao longo dos séculos, desafiando as soluções que o Homem inventou para o domar. Durante as cheias mais importantes as próprias barragens parecem não ter nenhum efeito no rio, com a mesma altura de água a montante e a jusante. Até a Ponte D. Luís, a imagem do Douro na cidade do Porto, por pouco não perdia o tabuleiro inferior no Natal de 1909. A água do rio quase lhe tocava e chegou-se a ponderar cortar a ponte com explosivos para que o tabuleiro superior não fosse arrastado.

Quando o Douro está em regime de cheia, eclipsa quaisquer cheias dos seus afluentes. Um destes, o Rio Tâmega, também corre em vales apertados e é alimentado por uma rede de afluentes densa, tal como o Douro onde desagua. As suas cheias marcam a história de Chaves e Amarante. Curiosamente, marcam também a História de Vila Nova de Gaia.

Foz do Douro
Foz do Douro em dia de bonança

O Tâmega nasce na província espanhola de Ourense, em Verin, no extremo norte da falha activa que passa por Chaves, Régua e Penacova. Segue ao longo dessa falha até Chaves, famosa pelas suas nascentes quentes, e inflecte para Oeste poucos quilómetros a jusante, em direcção a Amarante.

Antes de chegar a Amarante passa no estreito vale do Fridão onde, em caso de cheia, sobe rapidamente. Assim que se vê livre do aperto deste vale, uma torrente furiosa galga as margens e espalha-se pelos terrenos mais baixos, invadindo toda a zona ribeirinha de Amarante.

Há uma mão-cheia de séculos, numa destas ocasiões em que o Tâmega deixou o seu leito, a água chegou à Capela de São Gonçalo de Amarante e, até própria imagem do santo foi arrastada pelas águas, deixando a capela vazia. Este santo do final do séc. XII, curiosamente, de santo nem o nome tem, porque é só Beato. Caíu em esquecimento e o processo de santificação parou, talvez por todos assumirem que já se alcançou a santificação por usucapião religioso.

Diz-se que é santo casamenteiro, que casa velhas e novas por, em vida, ter oficializado muitas uniões de facto. Em Aveiro, onde é conhecido por São Gonçalinho, as donzelas que procuram marido fazem-lhe promessas e pagam-nas atirando cavacas do alto da torre da igreja durante as festas em sua homenagem.

Está associado a cultos ainda mais antigos, como atesta a Dança dos Mancos realizada só por homens em Aveiro, celebrando a cura de maleitas ósseas com falsos estropiados que se curam milagrosamente durante a cerimónia, e também a ritos de fertilidade que antecedem o próprio cristianismo. Em Amarante as cavacas assumem uma forma fálica, qual ex-votos, mais de acordo com ritos pagãos e dignos de figurar ao lado da cerâmica típica das Caldas da Rainha. São os caralhinhos de São Gonçalo embora sejam pedidos só pelo apelido para não ofender os restantes clientes das pastelarias. Durante o Estado Novo chegaram a ser proibidos mas, como sempre em Portugal, apenas com a convicção necessária para que parecesse que sim.

Mas houve um dia aziago em que o São Gonçalo de Amarante foi rio abaixo, fazendo companhia ao recheio de muitas casas e gente menos afortunada. Em Castelo de Paiva virou à direita e continuou pelo Douro, juntando-se aos destroços do Peso da Régua porque se o Tâmega vai cheio, o Douro vai mais.

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Deixe uma resposta

Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.

« - »