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20  07 2011

A cabeça de São Gonçalo (segunda parte)

O presente artigo, por ser muito extenso, foi dividido em várias partes. Esta é a segunda. A primeira pode ser lida aqui.

A imagem de São Gonçalo de Amarante foi arrastada da sua capela para o Rio Douro depois de uma grande cheia do Tâmega. Entretanto, a tempestade abrandou e as águas revoltas acalmaram-se. A sorte ditou que a imagem fosse encontrada a flutuar perto do que hoje é o cais de Vila Nova de Gaia, em frente às caves do vinho do Porto.

A chegada de uma imagem de forma tão invulgar foi de imediato classificada como milagrosa e apressaram-se a encontrar-lhe um cantinho numa das capelas da Vila Nova. Até 1834 Gaia e Vila Nova eram duas povoações distintas, uma voltada para o mar e outra para a agricultura. Vila Nova ocupava a zona ribeirinha e o centro de Gaia localizava-se perto do que é hoje a freguesia de Mafamude.

Nos primeiros dias dos anos seguintes a imagem de São Gonçalo fazia procissões regulares entre a Vila Nova e Gaia. Os da Vila Nova, quase todos barqueiros ou gente ligada ao rio, adoptaram-no como padroeiro e, talvez por necessidade de afirmação, a posse e exibição da relíquia seria uma forma de o fazerem, ao mesmo tempo que feriam o orgulho de Gaia.

Ora acontece que durante uma destas procissões provocatórias a imagem visitou a Igreja de Mafamude. Para grande infortúnio dós de Vila Nova, o São Gonçalo entrou de frente para o altar e a população de Gaia apressou-se a invocar uma tradição antiga: santo que entra de frente no templo não volta a sair. O São Gonçalo tinha escolhido nova morada e os de Vila Nova nada podiam fazer. Certamente que a decisão não acatada pacificamente, mas o certo é que, resignados, os da Vila Nova perderam o São Gonçalo para a Igreja de Mafamude.

Os anos de provocação não passaram em claro e no Janeiro seguinte saiu uma procissão de Mafamude em direcção à Vila Nova. Levavam com eles não a imagem, mas apenas a cabeça do São Gonçalo para não arriscar que os mareantes agora sem padroeiro a tentassem reaver enquanto lhes faziam pirraça. Regressavam a Mafamude tendo sempre o cuidado de entrar e sair nas capelas com a cabeça do São Gonçalo voltada de costas para o altar, não fosse alguém tornar a invocar a tradição e o santo escolhesse nova morada. A procissão anual de Vila Nova era agora de Gaia e estes últimos faziam questão de relembrar aos primeiros a perda da imagem ano após ano.

Chegados às margens do Douro começava o povo a gritar «O Santo é nosso! O Santo é nosso! O corno é vosso!» enquanto pavoneavam o São Gonçalo decapitado.

A dada altura, talvez para aumentar o tom da provocação, juntaram à cabeça do São Gonçalo, a do São Cristovão. A procissão fazia-se agora com o protector dos barqueiros e com o protector dos mareantes, profissões de quase todos os habitantes da Vila Nova. O bairrismo típico da região era exacerbado ao último grau. «O Santo é nosso! O corno é vosso!»

Muitos já sabiam que a procissão terminaria com cenas de pancadaria e troca de insultos e alguns usavam-na apenas como pretexto para resolver ofensas antigas. Até ao dia em que alguém resolveu levar uma barrica de vinho e uns petiscos para retemperar as forças. Uma zaragata podia ser apetecível, mas comida e bebida causam menos mazelas. O pretexto da procissão passou a ser a festa. A provocação original foi sendo esquecida, mesmo que a tradição diga que os de Gaia gritem bem alto aos da Vila Nova «O Santo é nosso!»

Vila Nova de Gaia
Vila Nova junto ao Douro, Gaia lá no alto

Procurei mais pormenores sobre esta invulgar tradição de levar em procissão apenas a cabeça do santo, mas nem nas informações da Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia adiantam muito mais que o percurso e a constituição do cortejo. Tenho a agradecer ao meu primo Jorge os detalhes coloridos da festa de São Gonçalo, especialmente no que toca ao motivo do pregão muito pouco condizente com a solenidade que deve rodear uma procissão.

«O Santo é nosso, o Santo é nosso. O corno é vosso! E ele é nosso! E é, é, é!»

Já percebi que o São Gonçalo de Amarante, beato santificado por usucapião, que cura mancos, resolve problemas de fertilidade como nenhum outro e casa mulheres velhas, novas e assim-assim, é um extraordinário elo de ligação entre ritos católicos e crenças mais antigas que se recusam a desaparecer. Os caralhinhos de São Gonçalo em Amarante, a Dança dos Mancos em Aveiro e a exibição da relíquia perdida em Gaia são as faces mais evidentes desta interessante mistura que revela um pouco do que nos molda como povo.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

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