Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

12 2011

Marcenaria canina

Os cães são uns excelentes companheiros para aqueles projectos mais demorados e aborrecidos. Uma tarde inteira a afinar as samblagens de uma peça é um desafio de paciência e poucos se voluntariam para fazer companhia a alguém que verifica os encaixes a cada duas voltas de formão. O progresso é lento e tem um efeito anestesiante. Excepto para o cão, que não sai da oficina enquanto a peça não é terminada.

Primeiro é preciso correr com ele duas ou três vezes de debaixo dos pés. A pique canina tem um fascínio especial por se deitar literalmente aos pés das pessoas. Depois de convencido, com uns empurrões e resmungos, acaba por se enroscar ao lado da bancada ou mais perto da porta. Não deixa muito espaço, mas fica fora da zona de pisadelas.

E depois finge que adormece. De olhos fechados e uma orelha espetada, espera que lhe perguntemos a opinião, porque trabalhar sozinho desmoraliza. «Cão, achas que está direito? Pois, bem me parecia.» Para além da orelha se virar na nossa direcção, nada mais indica vigilância, mas a companhia é bem vinda. E uma festa na cabeça de vez em quando também, acrescenta o cão.

As horas passam-se com uma certa indolência. Serrotes e formões não são muito excitantes e o companheiro canino limita-se apenas a anuir em silêncio. Por outro lado, tudo o que faz serradura ou tem movimentos mais vigorosos é sinal de que aquela posição é pouco vantajosa. Uma serra de arco indica claramente que o lombo tem de ficar perfeitamente alinhado com o vai-e-vem da lâmina. Por muito que mexamos a bancada ou a peça para que a serra aponte para outro sítio, o cão de ideias fixas limita-se a levantar-se e a deitar-se novamente debaixo da serra.

Marcenaria
Antes do acabamento

O mesmo acontece com a serra circular. As aparas são cuspidas num jacto forte para a direita. Quem não souber onde para o cão, segue o arco que a serradura descreve e lá o encontra, sentado e a encher-se de lixo com um ar estupidamente feliz.

No fim do dia, um monte de serradura clara sacode-se e lá do meio surge um cão. Quem diria.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

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