Biografia e notas pessoais

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Capítulo Sexto

também conhecido como fuso UTM 26,
ou Perdido no meio do Atlântico Norte.

   

    Aviso desde já que este é um episódio bastante longo... relata cerca de duas semanas de aventuras quase constantes... Cientistas provaram por W+Z que, bem esticado, pode ser comparado ao processo Vale e Azevedo!
    Se sofrer de radicalite aguda pode vir a experimentar efeitos secundários pela leitura continuada deste texto, tais como: olhos lacrimejantes, sinais de asfixia, ruborização das faces, prisão de ventre, unhas encravadas, cabelos brancos, rouquidão, perda de consciência, cãibras dos músculos da face ou mesmo ataques de caspa. A gerência não será responsabilizada caso algum destes, ou até mesmo outros, efeitos ocorra.

 

    Se tiver lido com atenção as indicações gerais e se sentir apto para continuar... o texto segue mais abaixo!

 

 

 

    Bom, cá vai!

 

    Como todas as boas histórias, esta começou de uma maneira muito simples.
    Estava eu muito descansado numa aula de Cartografia quando nos caiu aos pés uma oportunidade única - ir aos Açores de borla. Pelo menos foi o que pensei.
    As condições eram simples: ter tenda, carta e pila. O chefe não queria mulheres a trabalhar!

    Um simpático grupo de seis rapazes voluntariou-se imediatamente.

    Para os lados de Benavente foram impressos milhares da cartazes, que foram espalhados pelas paredes do Ribatejo, onde se lia:

6 - Magníficos Parolos - 6

Oriundos da Ganadaria da FCUL

Partem à aventura

< - >
Cavaleiros

Joaquim                   Pedrito
Bastinhas         de Portugal

< - >

E o magnífico Grupo
de Forcados Amadores
da Amora

Sol - - - - - - - - - - 1000$00
Sombra - - - - - - 1500$00

 

    Saiu um pouco estranho este anúncio, mas foi o pai do Jojoca que arranjou a tipografia (a mais barata num raio de 500 km) e a máquina que tinham imprimia cartazes tauromáquicos há mais de 20 anos, de tal maneira que a chapa tinha ficado colada...

    Voltemos à nossa história.

    Sem saber, fomos arrastados pelas malhas de uma rede de imigração clandestina com ramificações no Burkina Faso, Leste de Barrancos e Moscavide.

    Só nos apercebemos do que se estava a passar quando chegou o táxi para nos levar ao aeroporto (ou aerogare, como se diz na Ilha Terceira). O taxista era um brasileiro sem carta, que conduzia de olhos fechados um Mercedes 190D proveniente de um ferro-velho de Sacavém. Nós também íamos de olhos fechados, para não ver a estrada a passar por baixo dos nossos pés, através dos buracos no fundo do carro... Bem tentámos avisar os condutores dos outros carros que estávamos a ser raptados, mas o fumo que o carro largava (parecia que trabalhava a ramos verdes) gorou todos os nossos esforços.

    Depois de largados nas partidas do aeroporto da Portela, agrilhoados de pés e mãos, tratámos de procurar os nossos colegas de infortúnio. Também eles tinham sido forçados a levantarem-se a desoras e, meios estremunhados, enfiados num táxi e atirados juntamente com a bagagem, para a praça de táxis do aeroporto.

    É nesta altura que chega o capataz, de pull-over pelos ombros, averiguando o estado de conservação das antenas GPS que nos tinham implantado cirurgicamente na bagagem.

    Após alguns anos de espera para o embarque, lá fomos algemados aos bancos de um Dakota DC-3 das linhas aéreas do Botswana, em classe turística (entre as sacas de ginguba, duas cabras e a colecção de garrafas de vodka vazias do piloto - um russo de que mais tarde falarei).
    Antes do embarque fomos submetidos a exames médicos rigorosos.  Fizeram-nos arrastar a bagagem cerca de 4 km, a subir pois claro! De seguida passámos todos pelo Raio X, mas acho que apenas queriam ver se não tínhamos deixado cair a bagagem - não é que andavam a ver se as malas tinham ossos partidos! Os que caíam pelo caminho era chicoteados selvaticamente pelo filho do capataz. A nossa sorte foi que, mais tarde, engraçou com as vacas e era a estas que atirava calhaus...

    A viagem não foi muito má, até nos deram comida. Ao fim de algumas horas passou um sujeito de barrete azul e entregou a cada um uma taça com uma pasta esverdeada. Com a fome com que estávamos comemos com satisfação. Só quando íamos pedir para repetir é que reparámos nos passageiros dos lugares em frente a usar aquilo para lubrificar as AK-47 que o avião transportava para os rebeldes da aldeia de Santa Rita - um enclave Açoriano no centro do Texas. Não admira que tenhamos ficado mal dispostos durante as restantes 6 horas de voo. 

    Depois de uma violenta aterragem, num descampado paralelo à pista (ainda está para esclarecer se o piloto fez de propósito ou se estava convicto de que aquela é que era a pista verdadeira), com o trem de aterragem recolhido por falta de lubrificação (bem sabia que o Tonecas não devia ter comido o resto da massa consistente do balde do fulano do barrete, que ficou deveras chateado - felizmente que não percebemos palavrões em curdo). Como o avião já só vinha a planar por não ter combustível não havia problemas com incêndios e pudemos sair com toda a calma.

    Da aerogare fomos levados para a cidade de Angra do Heroísmo. Para tal tivemos de atravessar a ilha num Renault 19 verde comprado na mesma firma do táxi do brasileiro. Se não era a mesma firma, conseguiam vender carros assucatados da candonga... era tal qual o Mercedes...

    Connosco viajava um observador estrangeiro. A missão dele era perceber como se fazia uma campanha GPS barata usando mão de obra pouco reivindicativa (vulgarmente conhecida como mão de obra escrava). Tratava-se de um Holandês, que falava inglês com sotaque escocês, bebia chá em vez de café, e achava os Portugueses um povo notavelmente ineficiente. Felizmente que não percebia que nos ríamos com as figuras que fazia...

    Para ser sincero as condições até nem eram assim tão más. Estávamos hospedados na Residencial Monte Brasil, que ficava perto, imagine-se, do Monte Brasil! O único senão era o de que nos tínhamos de levantar antes dos padeiros e trabalhar 10 horas seguidas (com intervalo para um  almocito, obviamente). O único que reclamava era o chefe.
    «Mas que coisa horrorosa... um terceiro andar. Já viram o que é preciso subir?»

    Nos primeiros dias estivemos na Caldeira de Guilherme Moniz. Um antigo vulcão. Disseram-nos que estava adormecido já fazia cerca de três horas...

    A descrição do início da campanha pode ser encontrada nas notas do nosso observador holandês, que se revelou um fantástico escritor de ficção.

    «Era uma manhã chuvosa. O intrépido aventureiro holandês André, encostava-se ao assento do automóvel que percorria as estradas daquela ilha, que fazia parte de um país do terceiro mundo. Sentia-se bem ao saber que dois imbecis iam andar à chuva para instalar um receptor e ele ia poder ficar no quentinho. Segundo as indicações da guia, uma nativa que lhe fazia lembrar a Lara Croft...»
    Aqui interrompo eu. Fazia-lhe lembrar esta personagem porque lá na terra das túlipas não há mulheres daquele calibre, pelos menos perto dele... posso dizer que andou fascinado com o peito da nossa professora durante o tempo que lá passou.
    Bom, vou deixá-lo continuar onde o interrompi.
    «...Lara Croft, o ponto devia ficar por trás de uma praça de touros dentro da Caldeira. Ao fim de alguns quilómetros deram com uma construção branca que diziam ser uma arena. O estranho era que os touros estavam do lado de fora.
    A chuva tinha abrandado o suficiente para os operários de baixa categoria irem procurar o ponto. Andaram a fugir aos touros, subindo e descendo encostas escorregadias, saltando precipícios, sempre buscando a tampa de latão... nada encontraram. Depois de entrarem em contacto com o chefe da quadrilha...» O tal do pull-over sobre os ombros. «... ficaram a saber que naquela zona havia mais praças de touros que Portugueses no Luxemburgo. Afinal o ponto estava uns dois quilómetros mais adiante. O magnífico André, continuava a dar por bem empregue aquela viagem. Não era todos os dias que se podia ver semelhante desafio à gravidade.»
    Devo realçar que esta costela de rebarbado do nosso amigo holandês só terá tendência a piorar, como poderão ser testemunhas no final...

    E foi assim que eu e o MigMac apanhamos uma molha à procura de um ponto que não existia. Felizmente que na praça de touros correcta havia uma casita onde nos pudemos abrigar da chuva que tinha começado a aumentar (ou não estivéssemos nós nos Açores). Connosco estava um ser friorento, Jojoca.

    Jojoca era um mestre em artes marciais, especialista em lançamento de chamuças-da-morte e venda de flores. Andava a estudar com o pai a técnica da Bebinka, e da memorização de preços dos supermercados dos 200km2 em redor da sua casa. Estava-se a tornar num extraordinário localizador de pechinchas. Sofria era um bocado de aerofagia, na sua variante mais sonora. Passou 9 dias enfiado naquela casa, de barrete enterrado até às orelhas, luvas e casaco bem fechado. Não é que estivesse frio, mas como o pai lhe tinha ensinado, nunca se devia perder uma pechincha e aquelas luvas e casaco estavam a um preço bom demais para não se comprar...

    Tínhamos de zelar pela caixa amarela, manter as baterias em boas condições e ir verificando se o registo estava a ser feito. Como podem imaginar há coisas muito mais interessantes para fazer do que olhar para um receptor o dia todo... Ocupávamos o nosso tempo a jogar ao Sobe e Desce e outras batotas... por estranho que pareça, nem a Inspecção Geral do Trabalho, nem a Inspecção Geral do Jogo lá puseram os pés. E nós que precisávamos sempre de mais um para jogar à Sueca.

    Na primeira noite fomos todos jantar a um restaurante chamado Chefe Silva (ou coisa parecida), que foi onde vimos a maior concentração de homens sexuais na ilha. Posso quase jurar a pés juntos que todos os empregados eram gayatos. Naquela casa quem gostava de mulheres deviam ser as cozinheiras... De qualquer das formas, a comida era um luxo. Come-se mesmo bem na Terceira. Pudemos tirar as dúvidas quando fomos almoçar à Casa do Peixe, umas ruas mais abaixo.

    Era durante os jantares, quando estávamos todos juntos, que o olhar fixo do holandês no peito da professora nos fazia rir mais... Geralmente ficava sentado à frente dela. Nessas alturas, mal olhava para o que tinha no prato...

    À parte do tempo instável, do baixo salário, das más condições de trabalho só os milhões de coelhos que infestavam a ilha nos preocupavam. É que eram tantos que, no crepúsculo, era preciso sair do carro para os enxotar do meio da estrada. Pensa-se, embora ainda não haja confirmação, que os buracos nas estradas são causados pelos coelhos, que as devoram à laia de aperitivo...

    Num dos primeiros dias, o grupo do Tonecas, do Mole e do Gonçalo, no alto de um monte particularmente ventoso ocorreu a primeira desgraça de uma série de muitas. A tenda Super-Hiper-Giga-Turbo-Ninja-Mega-Zord-Dentes-de-Sabre do Tonecas partiu-se toda. As pobres das varetas não aguentaram um mísero vento ciclónico que fez voar as vacas que pastavam naquele prado. A partir desse dia passaram a levar o carro e a amarrá-lo bem ao chão.

    Foi nesse mesmo prado que o Tonecas assistiu ao milagre da vida. Viu um bezerro nascer! Logo a seguir foi perguntar à mãe babada (sim, as vacas andam sempre babadas) se ele saía ao pai... mas ela não sabia quem era, estava escuro...
    Por sorte conheceu o dono da vaca, que negou ser o pai da criatura (embora houvesse umas certas semelhanças na fala, especialmente nos uu). O certo é que lá convenceu o homem a oferecer-lhe uma garrafa de leite... que foi bebido no pequeno almoço do dia seguinte.

    Era ao pequeno almoço que estávamos mais impacientes. É muito cruel deixar 6 rapazes, na força da vida, a morrer de fome enquanto lhes passam à frente com bolos, pão, queijo, croissants, manteiga, leite, café, chá... só de me lembrar já fico com fome... volto já.

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    Muito melhor. Tenho de pensar em manter a forma (da barriga).

    Voltando ao assunto. O pequeno almoço era a parte do dia porque mais esperávamos, logo a seguir a acordar e antes de ir trabalhar...

    Os infortúnios do Tonecas não ficaram por aqui. Nem os do Mole e do Gonçalo.

    Lembrei-me agora de que não vos apresentei nenhum destes malandros. O Mole e o Gonçalo conheci-os nos porões do navio negreiro a que chamamos faculdade. O Tonecas será apresentado mais à frente, embora já seja uma personagem conhecida de aventuras anteriores.
    O Gonçalo pode ser descrito como um fã de Heavy Metal (pelo menos pela roupa preta), tão magro que se estiver nu lhe chamam garfo (diz ele; nunca foi confirmado).
    O Mole é um caso especial. É algarvio. Lá dos lados de Vila Real de Santo António. Marrocos, portanto. O nome Mole é a alcunha que lhe dão lá. O que significa que o acham preguiçoso... isto vindo daqueles lados ainda é pior. Passo a explicar:

    Há uns anos atrás fui a Vila Real de Santo António, mais concretamente ao campo de futebol do Beira-mar - o clube local.
    Estavam lá dois colegas, conterrâneos do Mole, a tentar pregar um prego. O problema é que as ferramentas estavam do outro lado do campo. Virou-se o mais preguiçoso e disse:
    «Calhava mêmo bêm ires buscar o martél...».
    O outro lá foi. Atravessou o campo. Procurou o martelo. Voltou a atravessar o campo. Mas tudo sem pressas, porque o trabalho não mata.
    «Toma».
    «É pá, nã era esse... vai lá pôr esse e traz-me outro...».
    E lá foi. Atravessou o campo. Pousou o martelo. Voltou a atravessar o campo. Mas tudo sem pressas, porque o trabalho não mata.
    «Então... qual queres?»
    «O grande...».
    E lá foi. Atravessou o campo. Procurou o martelo grande. Voltou a atravessar o campo. Mas tudo sem pressas, porque o trabalho não mata.
    «Toma.»
    Martelada em cheio no prego, mas com pouca convicção. Nova martelada, que falha o polegar por um cabelo. Olha para o prego, cerra os olhos, enche o peito e ZÁS! Martela o prego de lado e com tal força que fica todo torto e impossível de usar. Parecia um prego vindo do tal fornecedor de carros de que já falei...
    «Calhava mêmo bêm ires buscar mais um prego, qu'ê entortê este...».
    E lá foi. Atravessou o campo. Procurou UM prego. Voltou a atravessar o campo. Mas tudo sem pressas, porque o trabalho não mata....
    E foi assim que se passou mais de meia hora, só para pregar um prego.

    São estes rapazes enérgicos que o chamam de Mole... imaginem!

    Uns dias se passaram e fomos colocados noutro sítio. Desta vez era na parte mais verde da ilha, na Caldeira do Ginjal. A paisagem era um espectáculo.

    Foi aqui que o Mole e o Gonçalo foram atacados pelos forças especiais de Queluz (uma antiga colónia de indianos, mas isto é uma história já contada). As nossas fontes de informação já nos tinham comunicado a rotina daqueles dois:
    Acabadinhos de chegar do almoço, fechavam-se na tenda, aninhavam-se um no outro e dormiam uma sesta de 5 ou 6 horas.

    Muito sorrateiramente aproximámo-nos da tenda, vindos de Oeste. Tratava-se de uma operação militar muito bem organizada.
    Cada um de nós se aproximou de um quadrante diferente (para os leigos, cada um por seu lado), afastados da entrada e evitando fazer sombra sobre a tenda.
    Parecia não estar ninguém, tudo silencioso. Apenas o barulho do vento e o distante mugir das vacas abafavam o barulho da erva a crescer. Eu e o MigMac agarrámo-nos às varetas da tenda, soltámo-las e puxámo-las até ao fim. Toda a tenda se abateu sobre as duas Belas Adormecidas e ficou tão espalmada que julgámos estar vazia.
    Durante uns instantes nada se passou, nenhum movimento, nenhum som. Nada. O Gonçalo foi o primeiro a acordar, passados uns 20 ou 30 segundos (que para nós nos pareceram uma eternidade enquanto contínhamos o riso). Já marcado pela queda da tenda do Tonecas exclamou, numa voz muito estremunhada:
    - Foda-se! A puta partiu-se!
    Conseguimos conter o riso, de mãos na boca, a tapar o nariz, mordendo os dedos; foi difícil, mas conseguimos.
    Para além desta exclamação nada mais indiciava haver vida dentro da tenda. Após uns minutos começou um corpo a mover-se lá dentro. Lentamente, muito lentamente, procurava o fecho da tenda. Enquanto se abria a tenda ouvia-se o Gonçalo a dizer que «Foram eles, pá!». Depois de alguma luta, lá apareceu a cabeça do Mole à superfície. Olhou para um lado e para o outro (mas não olhou para trás da tenda!!!!) e disse:
    - Mas nã tá cá ninguêm...
    E voltou para dentro.
    Aqui não nos conseguimos conter e desatámos a rir à gargalhada. Só não nos rebolámos no chão porque o terreno estava minado (sim, as vacas largam minas por todo o lado).

 

    Uns dias depois, numa das nossas voltas à ilha, para verificar os receptores que ficavam no seu estado selvagem (à solta no meio do mato), que o nosso amigo André mostrou a sua costela alemã - aquela parte do cérebro que funciona mecanicamente.
    Caso não saibam, os Alemães têm mais 35 ossos que os outros humanos, à conta dos seus cérebros serem mecânicos.
    Logo a seguir a uma curva, em direcção à povoação do Raminho, que demos com um terreno dividido com muros de pedra vulcânica. Mal viu aquilo o André exclamou:
    «Shtone fenshces? That'sh sho ineffishcient!» (com o seu sotaque escocês, pois claro!).
    Bem lhe tentámos explicar que ali a questão não era a eficiência, era a necessidade. Os terrenos tinham tantas pedras que era necessário ir construindo muros para as empilhar.
    «Even sho! A wire fenshce would be much more effishcient!»
    «Mas olhe que não, aqui há mesmo MUITA pedra. Para fazer vedações de arame era necessário deitar todas estas pedras ao mar...» (também não é que fosse longe).
    «Even sho! Even sho!»
    Só quando subimos até ao lugar onde ia ficar o receptor é que ele percebeu o que queríamos dizer. Tínhamos de passar pela horta de uma casa. Lá ter vegetais tinha, mas as pedras eram tantas que não se via a terra...
    «Oh! I shee! There are lotsh of shtones here!»
    Ficámos sem palavras...
    Entretanto, não ia perdendo a oportunidade de dar uma espreitadela a vocês sabem o quê...

    Bom, a viagem até ao Raminho lembrou-me as fantásticas costeletas de novilho que se comiam n'A Caneta, em Altares (passo a publicidade). Por estranho que pareça, nos Açores come-se melhor carne que peixe, apesar de estarem metidos em peixe até à praia...

    Na volta passámos por um receptor que tinha sido colocado na véspera, numa rocha que estava mesmo no meio de uma linha de água. Realmente corria um fio de água de cada lado da pedra, mas nada que molhasse mais que as solas das botas.
    Passámos por lá porque a senhora que estava a guardar o receptor em casa (sob ameaça, evidentemente) telefonou a dizer que o aparelho estava debaixo de água! Nessa noite tinha chovido e tudo quanto era água daquele lado da ilha tinha passado por ali. O nível da água tinha subido mais de um metro, mas ficou provado que o GPS também pode ser aplicado à guerra submarina...

    Tenho de me lembrar disto, quando for andar de submarino outra vez... peço para abrir a escotilha para verificar se o receptor está a registar...

    Voltámos a ser agrilhoados e levados para mais um lugar distante. Ficámos a guardar um receptor perto da casa abandonada de um médico. Não percebo os Açorianos. Uma casa fantástica, perto de tudo (ficava a 10 km de cada uma das cidades), sem vizinhos para chatear, e abandonam-na!
    Foi um longo dia, mas ainda pudemos contar os carros que passaram na estrada em frente.

    Dois.

    Na verdade foram três, mas um passou num sentido e, ao fim do dia, passou no sentido inverso. Outro era o nosso, que lá ficou parado o dia todo. Se virássemos a cabeça depressa até parecia que estava a andar...
    No segundo dia foi tudo muito mais movimentado. Tínhamos acabado de chegar quando, surgido do nada, aparece um camião, cheio de cantoneiros. Pára mesmo em frente ao receptor, saltam quatro cantoneiros e desatam a carregar um montículo de terra ridiculamente minúsculo, da berma para dentro do camião. Passados cerca de 3.62 segundos (tenho de confirmar com o Radical) saltaram para o camião e partiram. Não admira que as estradas dos Açores estejam sempre limpas...
    Durante o resto desse dia não passou mais ninguém, mais valia ter ido passear e deixado lá o aparelhómetro...

    Ainda aproveitei para estragar fotografias com uma máquina antiga... consegui tirar umas 5 ou 6 totalmente desfocadas.

    Durante as viagens de um lado ao outro da ilha, tínhamos de usar a via rápida. Na verdade era uma estrada como as outras, talvez um pouco mais larga e movimentada que as do resto da ilha. O mais peculiar era que apesar dos frequentes nevoeiros na zona, ninguém abrandava, à excepção dos forasteiros, como nós próprios. Mais engraçado ainda era o facto de ser habitual haver engarrafamentos - por causa das vacas.
    Manadas inteiras ocupavam a estrada nos dois sentidos. Por vezes era necessário fazer slalom por entre as vacas, tentando evitar as marradas e as minas que iam ficando na estrada.
    Nos jornais que estavam na mesa do átrio da Residencial podíamos ir lendo as notícias dos desastres diários, quase sempre com vítimas mortais (de um ou outro lado), causados na luta entre condutores e vacas na via rápida.

    Foi no ponto de Porto Judeu que nos aconteceu um dos episódios mais estranhos, mas não vou contar já, primeiro preciso de situar a história.
    O Porto Judeu é uma povoação que fica muito perto de Angra do Heroísmo, mas aparenta ser uma estância balnear, cheia de casas de férias. De frente à praia (um monte de calhaus, com charcos pelo meio) de Porto Judeu estão os ilhéus das cabras, vestígios de uma antiga caldeira vulcânica.

    O receptor que estávamos a guardar encontrava-se apenas uns metros acima do mar. Montámos a tenda por trás de um muro e preparámo-nos para mais uns dias de aborrecimento.

    É aqui que entra Bernardo, o pequeno terrorista palestiniano (militante nº 3 do Hezbollah) que se intitulava de "Aranha Perneta, o Filho do Chefe" (era para se chamar "Escorpião do Deserto", mas esse já estava ocupado).
    Do alto do seu metro e vinte ouviu, incrédulo, Gonçalo a recitar o nome de todas as suas 6 namoradas, que se chamavam todas Ana, para não haver enganos.
    «Então, namoro com a Ana, com a Ana, a Ana e a Ana. Também ando com a Ana e a Ana. Mas estou-me sempre a enganar no nome!»
    A seguir ouviu parte da lista das namoradas do Mole, que se dizia serem tantas que todas juntas enchiam a Residencial e ainda tinham de ficar umas quantas na rua.
    Quando já estava boquiaberto foi-lhe explicado o porquê do Ilhéu das Cabras estar partido ao meio. É que o Mole, quando se esquece que é algarvio e se põe a nadar, pensa que é um torpedo. Não é que no já longínquo ano de 1998 se atirou (lentamente) à água e começou a nadar. Como estava distraído, foi nadando, nadando, nadando... Adormeceu e só acordou quando, com uma braçada, partiu o ilhéu ao meio. Foi ele a causa do sismo de 1998. Se não tivesse acordado, hoje já não haveria Arquipélago dos Açores...
    E foi assim que Bernardo, o "Filho do Chefe" ficou a conhecer o maior nadador do Mundo....

    As aventuras de Bernardo não ficaram por aqui. Ao fim de dois dias na ilha já era temido por todos os bovinos. A sua perícia como apedrejador de vacas, bois e outras pedras ia aumentando de hora para hora. Tudo piorou quando os contrabandistas de armas lhe fizeram chegar uma fisga. Aí nem os pássaros estavam a salvo.
    Por diversas vezes a Protecção Civil o tentou recrutar para exterminar a praga de coelhos trazida pelos Texanos (para quem tiver dúvidas quanto à geografia da Terceira, consulte um Atlas e verifique que o Texas faz fronteira com a aerogare das Lajes). Bernardo recusou sempre, dizia que os coelhos eram seus irmãos de luta, e que ele próprio se iria tornar um coelho-bomba e perder a cabeça. As vagas já estavam todas preenchidas. Já havia milhões de voluntários para se lançarem sob os carros nas estradas (não havia dinheiro para o TNT, por isso não explodiam). No Faial acontecia um fenómeno semelhante, mas eram usados gatos kamikaze... se calhar o dirigente era alérgico ao pêlo de coelho...

    Bernardo adorava os bichos pequenos. Ficava maravilhado sempre que via um bezerro. Até se esquecia de nos dar cabo do juízo. Era nestas ocasiões que o seu lado humano transparecia (e não encontrava pedras perto), deixava os animais sossegados, sem temer que os calhaus ganhassem movimento, que nem «pinhas a voar em arco».
    Realmente era um descanso quando conseguíamos arranjar-lhe qualquer coisa para se entreter.

    A parte mais cómica de Bernardo (o terrorista) era, sem dúvida alguma, aquela altura em que adormecia e pousava violentamente a cabeça no prato (ou não fosse ele um anão violento). Acontecia todos os jantares. Supusemos que ele fosse um autómato, alimentado a energia solar e que ficasse sem baterias pela hora do jantar. Tinha de ser levado em braços até ao carro pelo chefe... pelo menos estava quieto!

    Voltando a Porto Judeu. Para se sair daquele sítio era necessário subir uma rampa bastante íngreme (com uma inclinação próxima do valor da inflação no Ruanda). Quando abandonávamos o ponto costumávamos fazer uma corrida sui generis... ver quem conseguia subir com o carro na mudança mais elevada (ganhou o MigMac, quando subiu com um Fiat Punto em segunda!).

    Os almoços em Porto Judeu eram num restaurante ali próximo, já não me lembro do nome. Recordo-me apenas que o dono era um sportinguista ferrenho - tinha todas as fotografias de equipa desde antes dos "cinco violinos"...
    Comia-se lá bastante bem. E para quem gostasse de álcool, a salada de frutas era um luxo. Caí na asneira de pedir uma e passei o resto do dia a ter cuidado em manter a boca fechada sempre que passava por alguém a fumar... Mal veio para a mesa cheirou-me a aguardente, pensei que tivesse sido posta na altura. Levei uma colher à boca, bem escorrida, e fiquei afónico. Segundo o dono do restaurante era para fazer crescer os pêlos do peito... se era ou não, não sei, mas que fiquei com mais pêlos no peito que o Marco Paulo tinha na cabeça nos anos oitenta, lá isso fiquei.

    Apesar de tudo, foi este homem que nos vingou as afrontas do André.

    Se bem se lembram, o André não bebia café. Depois de cada refeição pedia sempre uma chávena da chá. Dizia que gostava de café, mas achava o café português muito forte.
    Depois de uma refeição nesse restaurante de Porto Judeu, manteve a tradição, pediu um chá!
    Quando o dono veio perguntar se queríamos cafés, alguém lhe pediu «cinco cafés e um chá».
    «Um chá???»
    «Sim, é para este nosso amigo, que é Holandês e só bebe chá.» E o André sorria, seráfico.
    «Isso é p'ós meninos!» Gritou o dono do restaurante.
    E afastou-se a rir.
    Lá trouxe os cafés e, pouco depois, um chá; enquanto ria baixinho «...um chá... imagine-se...»

    O André lá percebeu que estavam a gozar com ele e perguntou o que se passava. Ficou um pouco amuado, quando lho explicaram, mas logo lhe passou (distraiu-se olhando para...).

    De volta à praia, lá estávamos nós três (Eu, MigMac e Jojoca) com um calor desgraçado. Resolvemos tornar aquele canto uma colónia nudista. Quer dizer, uma colónia tronco-nudista. E assim passámos o resto do dia, com as banhas de fora.
    Um pouco antes do almoço apareceram uns sujeitos, que deviam ser pai, filho e neto. Chegaram numa carrinha de caixa aberta azul, saíram, foram ver o mar, meteram-se na carrinha e foram-se  embora.

    Agora é que começa a parte estranha.

    Logo depois do almoço, voltaram. Percorreram a estrada lentamente (parecia que iam buscar um martél), como se buscassem algo. Quando passaram por mim, um deles salta da carrinha (o filho) e abre uma caixa de cartão que estava na traseira da carrinha. Mete lá a mão e saca uma coisa que posso descrever como um pão. Ou seria um bolo?
    Pão.
    Bolo.
    Pão.
    Bolo.
    ...

    Tenho de atirar uma moeda ao ar. A minha personalidade dupla está indecisa quanto à categoria daquela coisa... ficou decidido que seria... bolas, a moeda foi para baixo da cama!

    Enfim, comia-se. Só tive tempo de dizer «Bem haja» e ficar embasbacado a olhar para aquela coisa redonda, do tamanho de um prato. Sob um certo ângulo até que poderia ser confundida com um charuto acabaçado que assombrou diversas explorações agrícolas alentejanas na década de noventa...
    Logo a seguir a ter a coisa na mão (seria um pão-doce?), o fulano entrou na carrinha e foram-se embora.

    Depois de algumas hipóteses adiantadas quanto à origem daquela coisa, à sua composição e a sua comestibilidade, demos-lhe um destino poético: comemo-la!

    Ainda hoje estamos para perceber o porquê daquela oferta, a identidade dos sujeitos e se teria sido um plano maquiavélico do André, para se vingar da vergonha que passou no restaurante, enviando-nos um presente envenenado. Deve ter escolhido o veneno mais forte que conhecia, mas era forte pelos padrões holandeses, não para os nossos. Nada a que não se ganhe imunidade a comer nas cantinas da Universidade de Lisboa durante anos.

 

    Desde há muito que tenho deixado uma figura esquecida. Trata-se do Tonecas.

    É óbvio que o seu nome não é Tonecas. Mas é mais fácil ser identificado por Tonecas do que pelo seu nome verdadeiro (que também já ninguém se lembra qual é; nem ele). Se disser logo que é o Tonecas, toda a gente sabe de quem se trata. É daquelas alcunhas que assentam que nem uma luva.
    Uma das suas características mais marcantes é o seu gigantesco nariz vermelho. Sabemos sempre que o Tonecas se está a aproximar quando o céu escurece de repente.
    Outro pormenor que o distingue é que tudo é «FANTÁSTICO!».

    Pois bem, o Tonecas também é azarado. Começou com a destruição de uma tenda. Assistiu ao nascimento de um bezerro e depois o dono da vaca veio-lhe perguntar se ele era o pai do bezerro. Para culminar, só faltava mesmo entornar ácido de bateria numas calças impermeáveis. Foi isso mesmo que ele fez. Um dia disse:
    «Já só me faltava entornar ácido nas calças para ficar feliz!»
    Foi a correr procurar a bateria mais babada que houvesse (o que não era difícil, já que os sujeitos que cuidavam das baterias eram crentes no uso e abuso de ácido) e levou-a para todo o lado. De repente exclamou:
    «FANTÁSTICO!»
    Já tinha conseguido estragar as calças, estava feliz.
    Passou o resto da campanha com umas calças vermelhas com uma mancha branca gigantesca, mesmo à frente.
    Nessa noite perdeu a cabeça e juntou-se ao Gonçalo a admirar as velhotas que passavam, com um ar lascivo (eles, não as velhotas). O ar dos Açores estava a mostrar sinais de contaminação (Chernobyl, talvez), que lhe estava a matar o neurónio lentamente....

    Devo dizer que também não saí imune do contacto permanente com baterias lavadas com ácido. Fiquei com um par de calças com uns furos. O ácido dissolveu o tecido. Felizmente que as despi antes de chegarem à chicha!

    Mais um excerto da obra literário do nosso amigo holandês...

    «André, o intrépido achava esta gente muito atrasada. Num país desenvolvido não é preciso andar a carregar baterias de um lado para o outro, basta estender uma extensão até à tomada mais próxima. Sinceramente, são quase tão atrasados como os gajos lá da Indonésia, onde estive seis meses.
    Depois de um telefonema ao Rui, esclareci as minhas dúvidas. Em Portugal ainda não é vulgar ter tomadas espalhadas pelo campo. Tenho de voltar para a Holanda, que aqui não há condições!»
    O Rui é um Português, que mais tarde vim a conhecer (mas isso é outra história), a quem o André telefonava de 2 em 2 horas. Parecia impossível, sempre que acontecia alguma contrariedade, prontamente resolvida pelo nosso espírito bem Português do desenrasca, lá estava ele «G'ui, Theeje guysh are repairing an antenna cable with gum wrapper, it'sh sho ineffishcient!» (sim, ele também tinha uma certa dificuldade com os rr, para além do sotaque Escocês), «G'ui, I cant' believe that the antenna ishn't fixshed properly!»,«G'ui, you should shee the pair of...!»
    «Era inacreditável como aqueles cabeça-no-ar conseguiam fazer observações de jeito. Estavam sempre a arranjar maneira de aldrabar o trabalho. Consta até que a base do ponto permanente estava equilibrada em cima de pedaços de madeira podre!»
    Aqui não o posso desmentir... estava mesmo!

    Mas as nossas aventuras ainda não tinham acabado.

    Num dos dias anteriores ao ponto de Porto Judeu, eu, o Mole e o Gonçalo tentámos uma evasão das garras dos nossos escravizadores. Tentei fugir por via marítima, mas fui vilmente rasteirado por um degrau coberto de limos e dei por mim com água pela cintura, no meio do Oceano Atlântico Norte. Os meus planos não previam fugas a nado. Essa era a especialidade do Mole. É óbvio que há fotografias embaraçosas desse momento. É também óbvio que NUNCA as divulgarei. As minhas últimas palavras foram «Isto parece que não escorrega...»

    Chegados a Angra voltei a ser motivo de chacota. Como tinha ido tomar um banho de mar totalmente vestido fiquei com as botas ensopadas com água salgada. É um facto conhecido que cabedal e sal tendem a não reagir muito bem. Resolvi aplicar a teoria da substituição. Desloquei-me à farmácia mais próxima (é de espantar que os Açorianos não sejam hipocondríacos, com tanta farmácia) e comprei uma bisnaga de vaselina. Em terra onde há um restaurante só com empregados "delicados" é suspeito. Quando regressei à Residencial todos fizeram insinuações um pouco estranhas. Só posso concluir que já tenham conhecimento de causa...
    Durante os dias seguintes ensebei as botas várias vezes ao dia. Sempre que voltavam a secar apenas tinha de escovar o sal que ia vindo à superfície... ficaram boas, obrigado.

    O último ponto onde ficámos era no miradouro sobranceiro a Praia da Vitória, terra de Vitorino Nemésio. Ficámos perto de uma versão feminina do Cristo-Rei. Foi aí que conseguimos a proeza de parar o R19 só em 3 rodas. E temos fotografias que o provam!

    Era um local muito estranho. Muitos casais se deslocavam lá, para verem as vistas. Mas mal viam que já lá estávamos, iam-se embora... não percebi bem porquê, não éramos assim tão feios!

    Durante o dia a paisagem não era nada de especial. O miradouro dava sobre a Praia da Vitória e o fim da pista da Base das Lajes. Apesar de tudo o MigMac conseguiu fazer uma fotografia espectacular da Lua!

    Uma das coisas engraçadas da Praia da Vitória é a mudança de nomes das coisas, por via da proximidade com o Texas. Não é que às costeletas de novilho chamam "T-bones". Fazia parte da ementa de qualquer tasca coisas como "Chili" e "Club sandwich". E toda a gente fala em milhas, pés e onças, ninguém sabe o que são quilómetros! O dólar era moeda corrente e as caixas multibanco não forneciam escudos! Todos os carros que passavam eram feios para além da descrição e ostentavam matrículas paneleiróides só na traseira.
    Senti-me um pouco deslocado. Já não bastava estar envolvido com as máfias de Leste, nesta rede de imigração ilegal, agora já nem sabia em que terra estava. Era difícil conseguir uma refeição, já que ninguém compreendia o que dizíamos.

    Do alto do miradouro conseguimos avistar uma das coisas por que os Açores são famosos: vacas.
    Não é que as não tenhamos visto antes, mas naqueles dias vimos vacas nos sítios mais incríveis. Eram vacas a pastar nos quintais, erma vacas a a pastar nos separadores das estradas, eram vacas nas bermas e nas rotundas. Vejam lá que até havia vacas nos prados, onde é costume ver vacas no resto do mundo! Parecia uma verdadeira invasão de vacas. A tudo isto o Tonecas só era capaz de dizer uma coisa:

    «FANTÁSTICO!»

    Para nos deixar ainda mais deprimidos do que já andávamos, por estar longe de casa, num regime de escravatura, o imbecil do Jojoca não parava de cantar «I believe I can fly / I believe I can touch the sky...» ou «Every night, in my dreams / I see me, I feel me...». Tudo canções muito pouco conhecidas e nada irritantes quando cantadas sem tom e a toda a hora!
    Para quem não sabe, foi nesse dia que conseguimos admirar a técnica do Jojoca para se pentear. Vai dando cabeçadas nas paredes até o cabelo assentar... perguntem ao MigMac, que ele confirma.

    Não percebi bem o porquê dos Texanos (ou Tex-asnos) andarem fora da cidade Lego que têm perto da pista do aeroporto. Se lá até têm um MacDonalds privativo, que lhes supre todas as necessidades alimentares...

    Por falar na cidade dos militares americanos (segundo o Radical, dever-se-iam chamar milibares, que são unidades de pressão internacionais) estacionados na Terceira. Deve ser a coisa mais feia que já vi na minha vida. e olhem que eu já dormi no mesmo quarto que o MigMac! Imaginem-se edifícios todos iguais, pintados com a mesma cor (um castanho algo diarreico), com um número numa das paredes. Mesmo na parte mais residencial da base todos os edifícios são assim. Dá a impressão que foram todos largados de pára-quedas, já montados. Mas como os americanos até a gasolina trazem de avião... O certo é que tudo aquilo é americano, até os sinais de trânsito.
    Apesar da reconhecida incapacidade para ler do povo americano, insistem em não usar sinais simbólicos...
    O mais engraçado é que está tudo relvado à volta dos edifícios, há parques infantis, caminhos a ligar os diversos blocos e tudo. Mas não há uma única árvore! Não percebo... tanto cuidado com a relva artificial, mas os putos brincam sempre ao sol. Esperem, esqueci-me que são americanos. Os putos brincam em frente à televisão, tentando ver qual deles consegue fazer o fio de baba mais longo...

    Apesar de tudo, é bastante fácil reconhecer os tex-asnos. Têm todos um ar um pouco imbecil. Bem sei que isto pode ser subjectivo, mas há outras características que os distinguem: os 120 kg de peso mínimo e o péssimo gosto que têm com os carros!

    Para demonstrar a total imbecilidade dos soldados americanos só tenho de referir um episódio, que já se passou depois da nossa partida atribulada, de que falarei no fim, como seria de esperar!

    Uns dias depois de deitarem abaixo o World Trade Center, um pescador do enclave de Santa Rita voltava para casa. Santa Rita é uma aldeia piscatória que se encontra rodeada por todos os lados pelo Texas (uma ilha num mar de m3rda, portanto).
    O homem tinha estado a pescar nas rochas a Norte da pista de aterragem, até cerca das 5 da manhã. Voltava para casa por um caminho de terra que segue paralelo à vedação da base americana. A meio do caminho aparece-lhe um gajo grande, a gritar em Texano «Stand still, motherfucker!». Apontou-lhe uma pistola à cabeça e chamou o Sargento pelo rádio. Ficou o pescador sem saber se pousava o balde com o peixe, a encomendar a alma e sem perceber patavina do que o imbecil do PM lhe gritava.
    Ao fim de mais de uma hora (sempre a segurar um balde cheio de peixe, entenda-se) lá chegou o jipe com o Sargento. Interrogou o pescador com maus modos, queria saber o que fazia ele, aquelas horas, com um balde, perto da vedação da base. Era para pôr bombas! Só podia. Maldita Al-Qaeda, está em todo o lado. Só depois de se certificar que o balde continha apenas peixe, deixou o homem ir para casa. Sem pedido de desculpas, sem o levar a casa, nada!
    Suponho que o imbecil do PM que manteve a pistola apontada à cabeça do pescador tenha sido considerado o herói da base, e que lhe tenham pago uma rodada de Coca-Cola...

    Em Santa Rita passam-se coisas bem mais esquisitas. Dizem os putos lá do sítio, que um dia passaram três maduros num Renault 19 verde, que não batiam bem da bola. Então não é que queriam ir para o Faial de carro. Bem lhes tentaram explicar como se ia para a aerogare, mas deviam ser tolos, porque se lhes diziam para virar à esquerda, viravam à direita e depois vinham reclamar!

    O que se passou é que, em desespero, tentámos fugir mais uma vez. Queríamos partir para o Faial e, daí, voltar para casa. Tivemos azar, os putos que nos apareceram pela frente, na aldeia de Santa Rita, já tinham sido contaminados pelos americanos. Já não diziam coisa com coisa. Mandavam-nos virar à esquerda, nós lá íamos, virávamos e era um beco sem saída... voltávamos para trás, perguntávamos a outro puto e ele lá nos indicava o caminho para outro beco sem saída.
    A única vantagem é que conseguiram mandar-nos para um acesso aos radares da base americana, de onde se via todo o aeroporto. Lá ficámos um pouco a fotografar aviões indianos (o que estavam a fazer aviões indianos nos Açores é que já não sei!).
    Como as indicações que nos deram não foram grande coisa não conseguimos sair da ilha. Ficámos entregues aos mesmos que nos continuavam a explorar. O que vale é que o miradouro ficava alto e o chefe não ia lá acima porque «Aquilo é uma subida horrorosa!». Pelo menos nestes dias não fomos chicoteados...

    Num dos últimos jantares conseguimos a prova de que o André continuava hipnotizado. A nossa professora trouxe uma t-shirt com várias palavras escritas. A palavra "used" aparecia mesmo a meio do peito, em letras pequenas. Havia palavras bem maiores escritas por todo o lado, mas a meio do jantar, num daqueles silêncios repentinos, em que alguém manda sempre uma bojarda, ouviu-se:

    «Oh! How funny! Are you ushed?»

    A resposta não foi menos fantástica...

    «Err... sometimes...»

    Foi aqui que todos nós pusemos o bigode, viramos os olhos para o prato, mordemos a língua para não rir e voltámos à nossa refeição...

    Enquanto ficámos colocados no miradouro sobranceiro à Praia da Vitória (terra bem feiinha, por sinal) fomos examinar os destroços do Antonov do nosso piloto russo, que partira umas horas antes com um avião correio, com mais vodka do que cartas...
    Houve uma explosão na cabine de pilotagem e o avião despenhou-se na encosta que dá para a pista do aeroporto.
    A caixa negra não esclareceu ninguém, pois era usada como cinzeiro desde o último acidente.
    Julga-se que a explosão tenha sido causada por um descuido do piloto, ao tentar encher o isqueiro de vodka, com este aceso.
    O desastre foi recordado pelos locais durante largas semanas por ter coincidido com o golo que determinou a conquista  do campeonato regional de matrecos pelo PVMC (Praia da Vitória Matrecos Clube) frente à ADRCAJM (Associação Desportiva, Recreativa e Cultural dos Açorianos Jogadores de Matraquilhos). A direcção do PVMC foi reeleita por ter ficado com a fama de ter arranjado o fogo-de-artifício...
    Os matraquilhos são uma parte muito importante da vida Açoriana, de tal modo que, nas festas São Joaninas, jogam matraquilhos humanos com touros... pelo menos é o que parece, está-se sempre a ver umas pernas a rodar, à medida que o touro passa (o touro deve ser a bola).
    Não percebi bem como é que contavam os golos, já que nunca vi balizas... será que contam o número de feridos causados pelo touro a cada equipa e vêem que tem mais?

 

    Ao fim de 12 dias na ilha de trabalho escravo (a comer que nem príncipes e a mongar o dia todo), o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras apanhou-nos!
    Fomos considerados emigrantes ilegais, a trabalhar sem contratos legais de trabalhos, que conduziam sem carta. Todas as acusações foram dadas como provadas pelo Delegado do Ministério Público, que estava de férias no Continente e foi avisado por telefone.

    Fomos todos levados para o campo de concentração, onde ficámos, em condições bem piores que os taliban que foram levados para Cuba... Mantiveram-nos lá durante semanas, fomos torturados todos os dias (aqueles gajos gostavam de ouvir Marco Paulo, Excesso e Anjos em altos berros - e cantavam por cima!). Dormíamos nas nossas tendas (não é que não estivéssemos habituados, mas não era costume ser de noite).

    A nossa sorte foi termos encontrado um buraco na vedação. Bom, na verdade não era bem um buraco. É que, com os cortes orçamentais, só tiveram dinheiro para vedar a parte da frente. Sendo assim, fizemos as malas, chamámos um táxi e contornámos as grades. Ainda tive de voltar atrás para devolver a chave da casa de banho ao guarda, que estava na portaria. Já devia estar habituado às fugas, porque perguntou se já tinha transporte. Agradeci, mas já estava tudo tratado.

    Apenas tivemos de fazer uma pequena paragem. Ainda estávamos algemados e, na confusão, tinham perdido as chaves... nada que um contacto que o Jojoca arranjou (era o serralheiro mais barato do Hemisfério Norte!) não resolvesse.
    Só depois de ele começar a trabalhar é que percebemos porque era barato. Ninguém saiu de lá sem, pelo menos, uma martelada num dedo...
    Como o homem tinha as ferramentas todas espalhadas pela oficina o Tonecas aproveitou e sugeriu-lhe que usasse uma caixa de um receptor. Até estava um sozinho no meio do campo, perto dali. Só tinha de abrir o cadeado da caixa metálica e tirar a malinha amarela... O Tonecas tinha acabado de se vingar da rede esclavagista!
    Viemos a saber que a caixa metálica que abrigava o receptor tinha sido arrombada. A tiros de caçadeira. Por incrível que pareça, o receptor não sofreu estrago nenhum, mas a caixa ficou que nem um passador, o cadeado volatilizou-se e o estojo do receptor ganhou asas! Nunca mais ninguém o viu... deve ter dado um jeitão para guardar as ferramentas do nosso serralheiro.

    Partimos, de novo, em direcção à aerogare. Envergávamos disfarces, para que os cabecilhas da quadrilha não nos reconhecessem. Eu pus o bigode. O MigMac disfarçou-se de Nazi. O Jojoca tentava vender as pechinchas que tinha comprado sem necessidade «Qué pechincha? Qué pechincha?», disfarçado de Gonçalo. Ninguém se queria disfarçar de Tonecas, por isso o Gonçalo fingia que dormia e o Tonecas fazia que era o Mole.
    O Mole não se disfarçou, não enganava ninguém; apostou que se fosse devagar o podiam confundir com uma árvore (e resultou!).

    Conseguimos entrar no avião. Tudo parecia correr bem, mas a partida estava cada vez mais atrasada. Esperámos e esperámos. Esperámos mais um pouco e começou a escurecer. Nessa altura apareceu um carrinho de aeroporto, carregado com as nossas bagagens (exactamente as mesmas que tínhamos registado umas horas antes).
    As malas tinham sido tão bem empilhadas que, numa curva, duas malas (a minha e a da nossa professora) deram por si a afastarem-se do céu à mesma velocidade que se aproximavam da pista... Os estragos não foram grandes. Ainda tivemos a oportunidade (raríssima) de ver um carrinho cheio de malas a fazer um 8 no meio da pista, só para ir buscar as malas. Devo confessar que o Mole esteve prestes a ser batido, em termos de lentidão, pelo funcionário a recolocar as malas no atrelado. Mas não foi por ter demorado muito que foi mais meigo.

    É nestas alturas que dá vontade de ter a mala cheia de nitroglicerina!

    O voo até correu bem, não fosse a tempestade nos ter desviado um pouco da rota... o piloto achou estranho ver tantos icebergues ao largo do cabo da Roca. Pediu imensa desculpa, mas no curso intensivo de pilotagem que estava a tirar ainda só tinha tido a lição de como se deve vestir a farda. E as aulas de pilotagem mesmo só começava daí a umas semanas, depois da operação às cataratas.

    Depois das costumeiras 12 horas de viagem até à metrópole, uma multidão aguardava-nos. Gritavam palavras de ordem, faziam barulho, mostravam o rabo à polícia... afinal tratava-se de mais uma manifestação de estudantes pedindo redução no preço o álcool. Facto que mereceu o maior apoio da parte alcoólica da nossa comitiva, Tonecas, Gonçalo e Mole.

    Depois das formalidades alfandegárias, por causa das pechinchas que o Jojoca tinha comprado e que pagavam imposto ou eram ilegais. Afinal de contas, tínhamos estado perto do Texas, que faz fronteira com o México. E é pelo México que passa grande parte da cocaína que se usa na Coca-Cola...

    As nossas famílias já tinham a esperança de nunca mais nos ver, mas o destino assim não o quis, o que os deixou destroçados. Ainda não era desta que se livravam de nós. Bem que forma ao aeroporto tentar-nos convencer que estávamos melhor lá nos Açores, que eles queriam ter ido, blá, blá... O que queriam mesmo era que a gente não voltasse!

    Quando já estávamos de partida, ouvimos algo que nos deixou os cabelos em pé.

    «Mas que coisa horrorosa, ter de andar isto tudo. Porque não compram carrinhos de golfe para o aeroporto?»

    Julgámos que os cabecilhas nos tivessem perdido o rasto, ou que ainda estivessem detidos na Terceira, sob as acusações de tráfico de mão-de-obra ilegal, apedrejamento de vacas, uso indiscriminado de fisgas sem licença e poluição sonora com tanto «horroroso» e «o Diabo a sete».
    Algo levou as autoridades a arquivar o caso o tempo suficiente para prescrever (ou foi logo prescrito, sem precisar de esperar...).

    Tinham conseguido partir da ilha disfarçados de terroristas surdos-mudos nepaleses, que viajavam para uma convenção.
    Os agentes de segurança da aerogare são muito compreensivos quando se trata de viagens de negócios.

    Enfim, lá chegámos, sãos (de corpo, talvez) e salvos. Fomos para casa (para infortúnio da família) e vivemos felizes (estúpidos mas felizes) até hoje. Amanhã será um novo dia, recheado de mais e melhores aventuras!

    Bem sei que alguns vão achar difícil acreditar em tudo o que vos contei... são aqueles que negam à partida uma ciência que desconhecem. Tudo isto é a mais pura verdade, ou eu seja um autoclismo de água morna! Se quiserem uma coisa mesmo louca, esperem que eu deixe de tomar os pingos pela manhã!
    E assim que sair do colete de forças conto-vos como foi a segunda viagem aos Açores.

 

    Espero que tenham gostado.

Queluz, 9 de Maio de 2002

 

(Se os sintomas persistirem, suspenda o tratamento imediatamente e contacto o seu médico ou farmacêutico)