Biografia e notas pessoais

Capítulo I ] Capítulo II ] Capítulo III ] Capítulo IV ] Capítulo V ] Capítulo VI ] Capítulo VII ] [ Capítulo VIII ] Capítulo IX ] Capítulo X ]


Capítulo Oitavo

também conhecido como Escravidão, parte II
ou viva o Gin tónico do Peter.

 

    Como já devem ter percebido, falo dos Açores. Isto quer dizer que vai ser comprido...
    Não digam que não avisei!

  

    Passados alguns meses da nossa libertação da escravidão na Ilha Terceira, voltámos a cair nas garras das máfias.

    Como diria o nosso colega Oãmela Luas (leia-se ao contrário, para quem não identificou o piloto do ultra-ligeiro de Tróia) «É verdade, pá! O Afonso, o Mig Mac e o Tonecas foram para os Açores!»

    Aparentemente o Jorge, devido ao seu problema da aerofagia, resolveu fazer uma operação (que não correu nada bem, diga-se de passagem). Como não tinha dinheiro para pagar, contraiu um pequeno "empréstimo" a um fulano chamado Vladimir (Borman, para os amigos), que não falava Português. Como o contrato estava em Moldavo, não se apercebeu de que os juros eram um pouco mais elevados do que pensava (cerca de 50%, pagos semanalmente em divisa forte). Quando chegou a altura de pagar... bom acho melhor censurar um pouco... mas agora já sabem porque o aflige tanto aquele joelho (e depois vem dizer que é de jogar à bola... é o chamado traumatismo ucraniano).

    Não querendo ser "incentivado" de novo, vendeu-nos como escravos! Mas tenho que admitir, tem jeito para o negócio - deve ser de família - conseguiu impingir-nos a um negreiro insuspeito.

    E pronto, foi assim que nós três nos vimos no Faial.

    É claro que no aeroporto a confusão era geral. Ainda não tinha feito um mês que o Big Laden e os Talismãs da Morte (um famoso grupo musical) tinham feito a casa vir abaixo (leia-se WTC). Obviamente que, com a ânsia de imitar os texanos, o aeroporto da Portela parecia o aeroporto Ben Gurion quando recebem o primeiro-ministro de Israel: toneladas de polícias com máscaras e pistolas-metralhadora, vestidos de preto e cara de mau. Não entrava ninguém na gare sem ter o cartão de embarque devidamente carimbado e assinado pelo avô do padrinho de baptismo do presidente da junta de freguesia da área de residência - não se pode facilitar a vida aos terroristas!

    Fomos recebidos não por uma magnífica passadeira vermelha (que merecíamos, diga-se), mas sim por uma esponja embebida em desinfectante. Não fosse o caso de termos pó-de-talco (o tal de antraz...) nas solas. Cá para mim, trata-se de uma cabala promovida pelos industriais da borracha sintética para dissolver as solas dos sapatos e aumentar as vendas de capas e meias solas. Como a melhor prova da existência de uma conspiração é a total ausência de provas (o que mostra que a conspiração está a funcionar em pleno) esta não pode deixar de ser verdadeira! Abaixo a borracha sintética!

    Para além dos três magníficos (quer dizer, do Magnífico e os outros dois), faziam parte desta alegre excursão o gémeo do terrorista (aquele que atirava pedras às vacas, julgando serem granadas), o seu progenitor (que se arrependeu mil vezes de o ter levado), a nossa professora Maria Catita (que não gosta que lhe chamem Cristina - ou será ao contrário?). Da parte do IICT ia a Eng.ª Paula Santos.

    Acompanhava a expedição um sujeito sinistro que dava pelo nome de G'ui. Pelo menos era o que o holandês voador lhe chamava ao telefone. Afinal chamava-se Rui e até nos pareceu simpático... das duas vezes que o vimos.
    É certo que acabou por ganhar alguns inimigos quando se lembrou de actualizar o software do receptor da estação fixa e perdeu duas horas de registo... mas nada que não tenha ficado resolvido com uma bela marretada na carola (bateram-lhe com um Cocas de borracha no alto da pinha, que prefere permanecer anónimo).

    As acomodações não eram tão sumptuosas como na Terceira. Acabaram-se os quartos de 200m2 forrados a veludo e soalhos de carvalho tunisino (raríssimo!). Acabaram-se as banheiras em que se podiam dar 4 braçadas sempre sem pé... acabaram-se os pequenos-almoços de faisão recheado de línguas de cotovia e coisas do género.
    Passámos para uma residencial com o chão revestido naquele sempre tão acolhedor mosaico branco. Era particularmente agradável sair da cama e saltitar de mosaico em mosaico até ao chuveiro, para se passar um bom bocado a gelar enquanto a água não vinha quente (nos primeiros dias, não era rara a vez em se saía do banho com uns galos e nódoas negras, por causa dos cubos de gelo que eram cuspidos do chuveiro). Por coincidência, ou não, foi nesta altura que um alpinista Português se perdeu e depois ficou sem nariz, dedos, orelhas e carteira, por causa do frio...

    Na primeira madrugada tivemos logo uma surpresa. Uma gigantesca aranha amarela assombrava a sebe da propriedade. Aquilo devia ter pr'aí uns dois metros de diâmetro (sem contar com as patas). Mal nós sabíamos que era das mais pequenas!

    Apesar de ter ficado combinado que a residencial fornecia pequeno-almoço, nunca o provámos. Aparentemente os continentais (nós) levantam-se demasiado cedo. Sendo assim, fomos forçados a ir tomar o pequeno-almoço a um acolhedor café na Horta.
    Este café estava munido de uns autómatos a quem chamavam empregados. Estes sujeitos eram umas verdadeiras máquinas! No segundo dia em que lá fomos, nem nos perguntaram o que queríamos: «Ora, são oito sandes mistas, duas de queijo, seis galões e um leite com chocolate e mais quatro sandes de queijo embrulhadas, não é verdade?». Olhámos uns para os outros, encolhemos os ombros e balbuciámos um «Sim...» muito tímido. É que tinha sido exactamente isso que tínhamos pedido no dia anterior. Será que éramos os únicos clientes que tinham e os restantes eram só figurantes, daqueles à laia de engodo, para nos caçar?

    Um elemento dominante da paisagem do Faial é o Pico. Mesmo quando não se está a ver a ilha, há sempre um quadro na parede com uma pintura ou fotografia da dita. E sempre com nuvens no cume. Pode-se dizer que o Pico nublado é omnipresente no Faial, muito mais que o verde e as hortênsias.

    Dizem que o Pico tem sempre nuvens, mesmo que o dia esteja límpido. Apenas em ocasiões especiais (quando o Belenenses é campeão ou quando o padre Melícias não está na televisão) é possível ver o vulcão em todo o seu esplendor.
    Deduzo que os pastéis de Belém tenham sido campeões e o frade franciscano tenha andado com dores de barriga durante umas horas, porque vimos (e fotografámos) o Pico descoberto.

    Outro elemento importante da paisagem dos Açores são as vacas. Tal como na Terceira, estão por todo o lado. E os bezerros são os piores. Ainda não sabem bem qual o seu lugar. Houve até alturas em que nos fazia confusão como podiam estar a pastar meias metidas na estrada, nas curvas mais fechadas. E até já estávamos habituados a vê-las em sítios esquisitos, mas aquilo era demais!

    No primeiro dia de trabalho tivemos de ser arrancados das camas com o recurso a baldes de água fria, chibatadas e ferros em brasa. É uma crueldade, perturbar o sono de beleza de estudantes em crescimento (em termos de perímetro abdominal, entenda-se). O certo é que antes do nascer do sol já estávamos a trabalhar...
    A nossa missão consistia em invadir um forte. A sério! O primeiro ponto estava localizado mesmo por cima de uma bateria de artilharia da 2ª Guerra Mundial.

    É óbvio que aproveitámos para explorar aquilo de ponta a ponta! Do lado de fora havia pouco à vista. Apenas a entrada no complexo, duas bases para peças de artilharia (completas com elevadores de cargas e granadas) e clarabóias espalhadas um pouco por todo o lado. Para além disto havia apenas uns quantos milhafres que rondavam o promontório da Espalamaca (onde se situa o dito bunker). É claro que os milhafres afugentaram tudo quanto era pássaro daquela zona.
    No chão havia erva e toneladas (leia-se TONELADAS e TONELADAS) de aranhas gigantescas, semelhantes à da residencial. Estas encarregavam-se de consumir a bicharada que os milhafres desdenhavam... e algumas vacas mais incautas que desapareciam misteriosamente.

    Quando os rapazes vindos lá da Flandres resolveram ir morar para o Faial levaram também os seus hábitos, ainda hoje famosos, de serem muito brandos com o consumo de estupefacientes... Não é que o bunker no promontório da Espalamaca era o Casal Ventoso da ilha lá nos princípios do Séc. XVI. Pois, e espalamaca (com alguma adaptação, naturalmente) significa "ponta da agulha" em flamengo.
    Como diria o José Hermano Saraiva «Era aqui... neste preciso lugar... que os toxico-dependentes... naquela altura... cuidavam de si... mas depois o povo.... começou a reclamar que era uma pouca vergonha... que assim não havia turistas... e foram todos atirados ao mar! E agora reparem... se não era bom fazer-se aqui... a passar por acolá... uma estrada, que trouxesse os turistas... para apreciar o Faial».
    Caso para pensar: Será que o Tonecas tinha ascendentes no Faial? Ele é que costuma dizer «Matavójatodos!» E não é que mataram? Já não há flamengos droga-minas no promontório da espalamaca...

    Voltando às nossas aventuras...

    Do lado de dentro havia umas centenas de metros de corredores, organizados em dois ramos. O primeiro a ser explorado foi o que descia às profundezas do promontório e terminava numa sala de pontaria. Esta sala, situada a cerca de dois terços da altura do promontório parecia um ninho de metralhadoras, com anteparas blindadas que subiam e desciam com o recurso a uma manivela em cada uma das seis aberturas estreitas de que dispunha. Apesar de estar abandonada há anos, ainda funcionava tudo como devia.
    No centro da sala há uma coluna onde se pode colocar uma alidade e indicar azimutes e distâncias aos artilheiros (estacionados umas dezenas de metros mais acima). Desta pequena sala se abarcava todo canal a Sul do promontório.
    Ainda neste ramo do bunker há os acessos aos fossos das peças. Do lado de cada um há dois sistemas de elevadores em mau estado (mas que serviram para abrigar o receptor de olhares indiscretos e tornou muito mais agradável manter as coisas a funcionar quando chovia - o que é raro nos Açores, como devem imaginar). Cada um dispunha de um paiol com uma porta blindada, devidamente recheado de teias de aranha e cheiro a pó.

    No segundo ramo, que se dirige para o interior da ilha, descendo menos e não tão extenso deparámos com uma porta blindada que selava uma divisão estranha. Tratava-se de uma calote esférica (que me fazia lembrar uma bela taça de mousse de chocolate ao contrário - mas isto é a minha gulodice a falar) com paredes duplas de betão armado. É possível circular entre as duas paredes, passando através de uma pequena abertura.

    Não é que seja particularmente interessante passear num bunker abandonado, mas quando não há mais nada para fazer...

    Sentados ao sol presenciámos um facto curioso. Num prado uns metros abaixo do promontório estavam vacas a pastar. Não seria nada de especial até que chegou o dono das vacas numa carrinha de caixa aberta cheia de canas de milho. Como ele era só um e as vacas muitas resolveu espalhar tudo pelo campo saltando para a caixa com a carrinha em andamento. Era a carrinha andar, o homem a atirar as canas ao chão e as vacas a seguir a carrinha.
    Quando estava quase a bater num muro, o homem saltou para o chão, entrou na carrinha, fez meia-volta e voltou a distribuir as canas. Um profissional, portanto.
    Acabadas as canas, enfiou-se na carrinha e foi-se embora, deixando as vacas distribuídas na (sempre na moda) forma de U.

    Um dos pontos abandonado à sua sorte ficava situado pertíssimo do velho farol que, apesar de parecer sólido, não resistiu ao sismo de 1998. Acabou por ruir de vez aquando de um percalço nuclear... mas tudo a seu tempo.
    Para se chegar ao local era necessário atravessar um pasto verdejante. Para não pisar muito a erva, o nosso chefe resolveu tomar um caminho diferente de cada vez. Assim ficava tudo pisado por igual! Ora acontece, porque se não tivesse acontecido não falava nisso, que o dono do pasto não gostou lá muito da história.
    Ao segundo dia fomos recebidos por uma daquelas sempre tão acolhedoras cercas eléctricas a vedar o campo. Antes que o agricultor tivesse tempo de carregar a caçadeira e correr connosco do pasto a chefe gritou bem alto «é por causa dos sismos!». De imediato guardou a caçadeira, nos ofereceu um copo e desejou boa sorte. Estes Açorianos são esquisitos...

    Para além das aranhas e do Pico com nuvens, uma característica do Faial que nos impressionou foi o facto de grande parte das estradas estarem estofadas a pele. A sério! Nunca, em nenhum lado nem em nenhum tempo vi semelhante mortandade na população felina de qualquer parte do mundo!
    Dava a impressão que havia gatos apenas nas estradas e que sofriam de uma atracção irresistível por toros de borracha em rotação, comummente associados a massas metálicas (vulgarmente conhecidas por pneus de automóveis). À saída da cidade da Horta era por demais. Havia mais gatos esborrachados por metro quadrado que buracos na baixa do Porto. E nós que gostamos tanto de gatinhos... fritos e acompanhados de puré, de preferência. Fez-nos impressão todo aquele desperdício de petiscos.

    No meio das nossas aventuras, deslocámo-nos até um novo ponto. Mesmo ao lado havia uma casa, cujo dono já tinha emigrado e conhecia o mundo! A conversa começou por causa do vento que se tinha levantado e da chuva molha-tolos que caía (não chovia no Faial há quase dez minutos) e ele começou a relatar as medonhas tempestades que se abatem sobre aquela zona. Já não estava habituado, por isso, nas noites de borrasca mais violenta ia dormir para a cave.
    Entretanto, passaram uns quantos emigrantes ucranianos (suponho que fossem uns colegas do fulano que emprestou o dinheiro ao Jojoca, para ver se os escravos sempre tinham sido entregues) com sacos de compras. O emigrante rosnou logo «'Xicanos!»

    Olhámos uns para os outros e, com ar aparvalhado dissemos «Não, são ucranianos...».

    Não nos quis ouvir. «Eram 'Xicanos, sim senhor. São piores que os pretos e os ciganos. Eu sei, porque eu tive uma padaria na Cal'fórnea e aquilo 'tava cheio de 'xicanos!»
    «Não se pode confiar neles. Pode-se estar a falar muito bem com um deles e espeta-nos uma navalha na barriga! E esses que para aí andam também são 'xicanos. Metem-se pelas canadas para fazer sabe-se lá o quê... 'Xicanos, voltem p'rá vossa terra!»

    Como já devem ter percebido, a sua estadia no Texas fez-lhe mal à moleirinha e toda aquela farinha lá da padaria devia ser um estupefaciente forte. Mas ainda continuou...

    «Os 'xicanos ainda são piores que os São Miguéis!»
    «Mas os Micaelenses são Açorianos!!!» Apontámos.
    «'Xicanos...»

    Estava visto, para além de ter medo de trovoada e de ter sido padeiro, não podia com 'xicanos... ou ucranianos, ou pretos, ou ciganos, ou gatos, ou testemunhas de Jeová, ou porcos amestrados que andam de bicicleta enquanto tocam gaita-de-foles e pandeireta... enfim, achava-se o maior; como todos os intolerantes que tenho conhecido.

    As más línguas dizem que a nossa viagem ao bunker foi feita por meio dum saco de plástico. O famoso saco de plástico que envolve o desmaterializador que permite atravessar paredes. Ora este saco trouxe muitos dissabores há uns anos atrás.
    Decorria uma aula de topografia, o professor Rivotti tinha acabado de nos explicar como é que os alinhamentos de capelas dedicadas à Nossa Senhora estavam ligados ao observatório da Politécnica e às figuras de Nazca. Eu julgo que me perdi algures entre a parte das runas místicas dos druidas e o balão meteorológico que afinal não era nada um balão meteorológico porque-isto-é-tudo-uma-grande-cabala de Roswell...
    Ora dizia eu, que estava a acabar a aula. Quando o professor sai, esquece-se do seu saco (sim, esse sempre cheio de papéis). A aula seguinte, de Mecânica Celeste era na mesma sala. O professor Calvão entra na sala e repara no saco, entretanto chega a Dona Ana para limpar o quadro e diz que leva o saco, para entregar ao dono.
    Passados alguns minutos aparece a cara esbaforida do professor Rivotti e, com um ar preocupado pergunta «Peço desculpa Calvão, viu por aqui o meu saco?». «A senhora já o levou...»«Então por isso é que ela estava ali aos gritos! Tenho de me despachar... obrigaaadoooo...» e saiu a voar da sala.
    A Dona Ana esteve de baixa nas duas semanas seguintes por esgotamento nervoso. Após muita especulação sobre o que teria visto ou não dentro do saco viemos a saber, pelo Sr. Carlos do bar que tinha, acidentalmente, activado o desmaterializador. Quando deu por ela já tinha as pernas a aparecer na cozinha do piso de baixo (e isso explicava os gritos aflitos). Se o legítimo dono não tivesse intervindo, a Dona Ana teria de vender a sua casa na Costa da Caparica e comprar um T1 na Nova Zelândia.
    Desde esse dia que o professor Rivotti não mais foi visto sem ter o seu saco algemado ao pulso, não vá o Diabo tecê-las...
    Com isto tudo, ainda não expliquei como é que o desmaterializador entra nas nossas aventuras...
    Imaginem a seguinte situação: uma instalação militar, com portas de aço fechadas com correntes e cadeados. Já imaginaram? E lembram-se da descrição que vos fiz do interior? Hmmm, pois, é um problema bicudo e garanto que nem o Luís de Matos nem o David Copperfield (não é o menino pobre que apanhava porrada e comia batatas pobres enquanto roubava carteiras e apanhava mais porrada do Charles Dickens, é o outro que namorava a Cláudia Schiffer enquanto tirava coelhos de baralhos de cartas) foram para lá chamados. Há sempre a possibilidade de ter inventado tudo, mas também não. Pode ser tudo verdade, verdadinha.
    Se acreditarem (e implicitamente acreditam no professor Alexandrino "firrme e hirrto como uma barrrra de ferrrro", na bruxa da tusa, no envolvimento de seres extraterrestres na elaboração do Orçamento de Estado e que o Vítor Constâncio tem pescoço), de imediato vos surge uma dúvida na vossa mente irrequieta (onde é que eu já ouvi isto?): Como raio entrámos? Pois é, segredos do negócio, que não convém revelar por causa da concorrência dos moços da Al-Qaeda e afins...

    Depois de alguns dias de relativa paz, começámos a notar sinais de cansaço na nossa chefe. Olheiras até aos joelhos, rugas marcadas, olhar esgazeado, cabelos brancos e eriçados e as mãos sempre a retorcerem-se uma na outra como quem estrangulava alguém e a murmurar «Ai, se te apanho a jeito! Ai, se o teu pai te perde de vista! Ai, se eu tivesse forças para te apanhar!» são os sinais de quem me lembro de forma mais marcada...
    Afinal a convivência com o pequeno terrorista estava a revelar-se mais difícil do que tinha parecido. Aparentemente tinha-se especializado na guerra psicológica com mestres coreanos. O miúdo era perito em liquefacção encefálica (fazer a cabeça em água) a quem quer que o acompanhasse. Por caridade (pois sou muito caridoso) sugeri passar uma tarde com ele e deixar as chefias recompor os nervos.
    Segundo dizia a minha bisavó (que vivia na Beira Interior e passou por momentos bem difíceis) só se deve oferecer uma vez - não vão as pessoas aceitar (porque se deve recusar a primeira oferta, por educação). O que querem, gente da província é assim.
    Pois ou estavam tão de rastos ou são tão mal-educados (segundo a minha experiência, são correctíssimos - suas mentes maldosas) que aceitaram logo!!! 
    Calhou ser num dia excepcionalmente ventoso, em que a antena do receptor teve se ser amarrada com fita adesiva ao marco geodésico, algumas horas antes do encontro com o anti-'xicanos. Por sorte minha (que sou um gajo sortudo nestas coisas) aquele ponto estava a meio de uma encosta e havia silvas com amoras. Engendrei logo um plano para cansar a fera. Pu-lo a correr contra o vento e a subir, com a desculpa de que era um concurso de apanha de amoras. Ao fim de uma dúzia de voltas à propriedade estava mais manso e com vontade de se sentar. Antes que tivesse oportunidade de recobrar forças ofereci-me para lhe fazer uma flauta, mas ele tinha de ir arranjar uma cana em condições (que, por acaso estavam na ponta mais distante da parcela, mas isso são pormenores).
    Como devem imaginar acabei por passar uma tarde bem sossegada, embalado pelo suave ronco de um pequeno terrorista adormecido na tenda enquanto eu via o Pico com nuvens (e que mais há para ver), sentadinho na base do marco. Só pensava «o que calhava mesmo bem agora era um chocolate quente e umas bolachinhas...» As bolachas ainda arranjei, mas o chocolate ficou-me atravessado.

    Da boca da nossa chefe ouvimos cobras e lagartos dos geólogos que tinham ido escolher pontos para implantar as antenas.
    Os principais critérios eram a distribuição e a imobilidade dos pontos. Era conveniente escolher afloramentos rochosos, para que os pontos não andassem a passear de um ano para o outro... E não é que alguns pontos eram do tipo cash-and-carry (era só pagar um pequeno-almoço reforçado e levar o calhau debaixo do braço)? Num dos locais mais insuspeitos (uma exploração leiteira, pois então) encetei conversa com o dono das vacas (afinal de contas estamos nos Açores e as vacas têm de ter dono) acerca do trabalho que andávamos a fazer.
    «Pois, está a ver, há uns satélites... medir tempos... blá, blá, blá...»
    «E para é que isso serve?»
    «Medir deslocamentos, deformações...»
    «Hã?»
    «É por causa dos sismos.»

     Em caso de não nos estarem a perceber, dizemos que é por causa dos sismos e ficam logo esclarecidos... é uma velha tradição das missões aos Açores.

    «Ah, bom! Já podia ter dito, estejam à vontade... e vossemecê é donde?»
    «Eu sou de Lisboa.»
    «Já lá estive... em 1974. Fiz a tropa nas Caldas da Rainha. Marchámos até Lisboa em Março, mas aquilo só correu bem em Abril...»
    «Olhe, que engraçado, o meu pai era oficial de dia no quartel da Pontinha, o posto de comando do MFA.»
    «Então aperte aí esses ossos!»

    Entretanto lá fui explicando que eram precisos afloramentos rochosos e pontos estáveis para que as medições fossem de confiança, como o marco geodésico onde estava a antena, naquela altura.

    «Aquele? Aquele derrubei-o quando andei a lavrar isto, mas depois vim cá com um tractor de um vizinho, que é mais forte que o meu, e agora já está no sítio.»

    Pronto, esta não foi culpa dos geólogos. Mas noutro ponto, aquilo que foi indicado como um óbvio afloramento rochoso parecia ter perninhas e que se ia levantar e desaparecer daí a nada. Até tínhamos medo de andar com passos muito pesados, não fosse o calhau rebolar até ao mar, levando antena, receptor, bateria e o mais importante - o saco das sandes!
    Nesse momento ouviu-se uma voz tonitruante e cavernosa, vinda do céu.

«GOOOOOOOOOLOOOOOO!
Geólogos ZERO! Afloramentos UM!
»

    Ficámos todos um pouco espantados, mas desde o tal episódio do porco a tocar piano enquanto andava de monociclo de olhos vendados, na berma do IC19 que acreditamos em tudo, mesmo o mais estranho. E comparando, isto até nem era assim tão estranho...

    Descobrimos um fantástico método de escolha de pontos. Quer dizer, o mérito vai todo para o nosso chefe. Entre dois pontos, igualmente favoráveis para o estudo qual escolher?
    A teoria do nosso chefe diz reza assim:

    «Entre dois pontos, igualmente bons para estacionar um receptor, escolhe-se SEMPRE o que está mais perto da estrada, nem que seja porque é mais perto...»

    Nada tenho a apontar a este método, até acho bastante conveniente mas não é lá muito científico... mas sempre é melhor do que ter de subir e descer aquelas estradas horrorosas com as baterias às costas.

    Num outro ponto fiquei sozinho o dia todo, entretido a fazer instrumentos de sopro recorrendo a um abundante suprimento de arundo donax (canas comuns, para os leigos) que se encontrava ali perto.
    Maldito dia em que descobri o raio as canas, pensaram os vizinhos daquele ponto à beira-mar plantado (o que numa ilha não é nada difícil). É que para saber se a flauta tinha o som certo tinha de a experimentar várias vezes... e bem alto. Mas mais sobre esta história virá a seguir.

    A cerca de 100 metros do ponto havia algo muito mais interessante. Na verdade até eram duas coisas. A primeira era um cão que queria ser fotografado. Estava sempre a ladrar a quem passava. Mas se lhe apontássemos uma máquina fotográfica assumia de imediato a típica pose dos cães de porcelana que adornam as casas das nossas tias que gostam de nos apertar as bochechas e cheiram a naftalina... mas já estou a divagar. Pois... ficava em pose e caladinho...
    Mesmo ao lado do cão estava um gato, mas preso a uma casota de cão. Terra desgraçada, em que com medo que o gato fique a atapetar a estrada têm de o prender...
    Com as fotografias aos bichos e os testes às flautas que me fizeram ganhar novos inimigos no Faial consegui gastar umas boas duas horas... das oito que lá tinha de estar! Durante o resto do dia observei o mar, observei as rochas, vi o Pico, verifiquei a bateria, observei o mar, observei as rochas, vi o Pico, verifiquei a bateria, aborreci-me monumentalmente como devem imaginar...

    A meio da tarde recebi uma visita. Passou por lá um velhote e como estava cansado de andar arranjou um pretexto para parar - meteu conversa!

    «Boa tarde! Então... vossemecê é donde?»
    «Eu cá sou do continente...»
    «Olhe, eu também. Sou do Marco de Canaveses. Vim para cá em 1943, por causa da Guerra... conheci uma moça e fiquei por aqui.»
    «E esteve nos bunkers da Espalamaca?»
    «Estive pois, aqui está tudo furado! Olhe, tenha cuidado aqui na estrada, que me atropelaram a mulher não faz dois meses...»
    «Ela ficou bem?»
    «Não, acabou por morrer, mas também já era velha...»
    «Curiosos, estes fulanos!» pensei eu.
    «E o que anda por aqui a fazer?»
    Lá expliquei tudo outra vez, mas o senhor só se mostrou interessado quando falei na palavra mágica - SISMOS... e aí avisou logo:
    «Pois, em 98 isto tudo ficou aberto, tiveram de tapar as valas que apareceram na estrada e tudo. No próximo, esta rocha vai parar ao mar. Até vão fazer a estrada passar lá por trás.»
    «Vai parar ao mar? Esta rocha onde está a máquina?»
    «Vai pois! Da outra vez caiu tudo menos esta, por isso, esta cai da próxima vez. Ou não sabe porque é que chamam a isto pedra furada?»
    «Errr, pois... porque tem furos e pode cair ao mar?»

    E nesse preciso momento voltou-se a ouvir a voz mística de que falei há pouco...

«GOOOOOOOOOLOOOOOO!
Geólogos ZERO! Afloramentos DOIS!
»

    Comecei a depositar pouca confiança na escolha de pontos sólidos feita pelos colegas geólogos. Não sei quantos pontos escolheram, mas a amostra aleatória onde estive não me convenceu lá muito...

    Tinha eu acabado de fotografar os bichos quando chegou o Pajero com os chefes. E vinham com cara de poucos amigos.
    «Então, anda-se a passear?»
    «Não, fui tirar fotografias ao cão e ao gato, que já estou farto de estar sentado em cima da caixa.»
    «Ah, bom!»
    E foram-se embora... não percebi nadinha.

    Mais tarde fiquei a conhecer a razão da preocupação com a minha excursão fotográfica.
   Sempre que estávamos dois num ponto e era necessário alguma coisa, quer fosse comida ou água ou pilhas ou lagostas congeladas e garrafas de champanhe (artigos de primeira necessidade, portanto), um de nós tomava os comandos da máquina (o mega Ford Fiesta azul) e ia às compras.
    Ora acontece que o MigMac e o Tonecas, estacionados na Caldeira do Faial tiveram a necessidade de fazer compras. Mas como são desconfiados e não queiram ser enganados nos trocos pelo outro resolveram ir os dois.

    GRANDE ASNEIRA Nº 1UM!

    Melhor ainda, sabendo que os chefes andavam a dar voltas à ilha e que íam constantemente à Horta foram os dois até lá.

    GRANDE ASNEIRA Nº DOIS!

    O melhor é que foram apanhados com a boca na botija!
    E porque não há duas sem três,

    GRANDE ASNEIRA Nº TRÊS!

    E foi nesta altura que a nossa chefe entrou em fissão nuclear! O cogumelo atómico foi visto em Tóquio. Ainda hoje os japoneses mais velhos julgam que a Segunda Guerra Mundial não acabou e que os americanos afinal lançaram três bombas. O Imperador Akihito (filho do Imperador Hirohito e neto do Imperador Pirolito), em comunicado à nação, assegurou que a guerra tinha acabado há mais de meio século, mas que aconselhava as pessoas a começar a encher sacos de areia, não fosse o Diabo tecê-las.
    Os americanos ficaram preocupados, Portugal tinha assinado o tratado de não-proliferação de armas nucleares e este teste nem aviso tinha tido.
    Os Russos ficaram preocupados porque éramos implacáveis (ainda mais que eles), nem sequer foi usada uma ilha desabitada para mostrar a bomba.
    Os Paquistaneses e o Indianos ficaram maravilhados. Se calhar podiam vir comprar pechinchas nucleares a Portugal...
    Os Espanhóis ficaram possessos. Era assim que agradecíamos as exportações de caramelos?
    Os Algarvios aproveitaram para se bronzearem instantaneamente.
    A população Açoriana que não foi volatilizada instantaneamente julgou tratar-se de mais um abalo e voltou à ordenha das vacas, como se nada se tivesse passado.

    Como só fui informado desta pequena aventura à noite, onde me deparei com uma série de caras feias não percebi a razão dos comentários sarcásticos da tarde... estou a perder qualidades.

    Devido a este infeliz acidente de percurso fui exilado para  a parte central da ilha, mas não escapei ao Pico (sim, também se via daquele ponto).
    Pois bem, nesse dia estive entretido a ver os coelhos a ser dizimados pelos milhafres. O raio dos pássaros até parecia que tinham feito aquilo a vida toda. Era ver o milhafre a pairar, a pairar e, de repente ZÁS, mergulhava e só se via uma bola de pêlo aos trambolhões pelo chão. Cheguei à conclusão que grande parte deles tinha formação em patologia, porque as vítimas pareciam ter sido autopsiadas, tal era a perfeição dos golpes...

    Entretanto andei a tentar fotografar uma dos milhões de borboletas que andavam a esvoaçar perto do marco, mas quase desisti. Parecia que estavam a gozar comigo. Sempre que não tinha a máquina a jeito ficavam eternidades à volta de uma só flor, mas bastava apontar a tele-objectiva que parecia terem deixado a chaleira ao lume e pisgavam-se com uma fineza que só vista.
    Resolvi adoptar a técnica do chá usada quando se sobe o Tamisa (ora aqui está uma referência nada subtil aos "Três homens num bote"). Gritei bem alto «Eu não gosto de fotografias de borboletas. Detesto fotografias de borboletas. Tenho raiva a fotografias de borboletas.»
    Não tinha acabado de dizer a última sílaba já tinha um esquadrão de borboletas a fazer pose em frente da máquina enquanto umas quantas se encarregavam de dar ao obturador e enrolar o filme.
    Como já devem ter percebido, adormeci ao sol. E deu-me forte na moleirinha. Acordei quando apareceram as fadas e achei que aquilo já era demais.

    Resolvi afastar as recordações deste sonho (ainda hoje me arrepia saber que sonhei isto) azucrinando os ouvidos dos pobres faialenses que tinham sobrevivido ao holocausto termonuclear (descrito por alguns jornalistas mais sádicos como «Catita!»). Assim, recorri ao meu fiel canivete e às canas das redondezas para o fabrico de instrumentos de sopro. Tanto soprei que acabei por pensar que andava atrás dos três porquinhos, a deitar casas abaixo.
    Às tantas apareceu-me um cavaleiro pela frente. Tivemos a conversa de surdos do costume até que surgiu a palavra «SISMOS» e aí ficou tudo claro...
    Entretanto perguntou se tinha ouvido uns assobios por ali. Fiz-me desentendido enquanto chutava para trás de um arbusto as provas do crime. Parece que depois de ter afinado as minhas flautas o leite das vacas começou, misteriosamente, a azedar. Desculpei-me com a história das radiações...
    «Sabe, elas andem aí...»
    «Pois, elas andem aí...»
    «E depois as vacas apanham com elas, mas a onda volta para trás e bate na lâmpada...» é bom usar frases feitas, assim dá-se o toque de credibilidade que a flauta enfiada no bolso das calças retira...

    O intrépido cavaleiro acabou por se ir embora, disse que tinha visto borboletas a tirar fotografias umas às outras e queria ser fotografado. Afinal eu não estava maluco. Foi tudo verdade! Não foi um sonho!!! Mas espera lá... o rolo é meu! Larguem já isso!

    Bolas, um rolo inteiro com borboletas a esvoaçar com um ar imbecil... mas que mal é que eu fiz???

    Mudando de assunto. O cavaleiro lá se foi embora, a lamentar-se do leite azedo e deixou-me entregue às borboletas. O dia até nem foi assim tão mau.

    Quando, finalmente me vieram buscar acabámos por fazer uma pequena paragem. Na beira da estrada estavam três mamões (bezerros por desmamar) a treinar para deixar de ser mamões (estavam a ser desmamados um pouco contra vontade).

    O Tonecas foi incapaz de resistir à atracção que sentia pelos bezerros, desde que assistiu a um parto na terceira. Chamem-lhe instinto paternal, chamem-lhe vontade de saber como são os bifes quando pequenos, chamem-lhe vontade de pisar minas bovinas, chamem-lhe Tonequices.... o certo é que se quis apear do carro em movimento só para observar os bicharocos.

    Em boa hora o fez, pois um deles quando se entregou aos braços de Morfeu (quis fazer a sesta) esticou a corda que tinha à volta do pescoço de tal maneira que nem se conseguia levantar.

    Lá tirámos à sorte qual Tonecas é que ficava a agarrar a parte de trás e puxámos o bicho um pouco para o lado. Assim já se conseguia levantar. Tirámos as fotografias da praxe e arrepiámos caminho, que já se estava a pôr escuro e a hora do jantar se aproximava.

    Regressámos à nossa fantástica residencial, pela estrada forrada a coiro de gato (que é um luxo para disfarçar suspensões mais duras) e pedimos pizzas. Como o dono também tinha sido emigrante não percebemos muito bem de que eram as pizzas. Tinham "lots of cheese, ham and bacon", entre outras coisas. Ingredientes 'xicanos, portanto.

    Como o que não mata engorda, pedimos duas de cada!

    Chegou o momento de apresentar mais uma personagem fundamental para o natural desenrolar da história. Trata-se de um topógrafo, de seu nome Sarmento.
    Aparentemente era uma pessoa normal.
    Dois pormenores de classe o distinguiam dos restantes, no entanto.
    O primeiro, que decerto fazia furor para as apostas de bar, era a sua impressionante capacidade de emborcar quatro (4) latas de coca-cola antes da refeição. Dizia que antigamente era cerveja, mas agora tinha de conduzir, por isso passara para a cola. Como devem imaginar, precisava de algum líquido para empurrar o bolo alimentar... digamos que uma lata para cada duas garfadas. No fim de uma refeição normal a gerência costumava chamar um sucateiro para comprar as latas a peso.
    O segundo pormenor de classe é o de que tem acompanhado todas as missões ao Faial e sabe os podres todos de toda a gente... e mais não digo! É o sonho de qualquer comadre...

    Acontece que depois deste jantar teve um acidente de automóvel (do qual não teve culpa nenhuma, diga-se) e pronto, não há mais nada para contar... parecia mais interessante, não parecia?
    Confesso que também fiquei um pouco desiludido. Estava à espera de uma volta qualquer do destino que tornasse isto interessante. Referi que o Pico tinha nuvens e se via do local do acidente? Não? Então fiquem a saber que do local do acidente se via o Pico encoberto... como seria de esperar.
    Nem assim melhorou... pronto, prometo que o culpado não vai ser o mordomo. Também não?
    Hmmm, vocês são esquisitos!
    E se for assim? No preciso momento em que os carros embateram um no outro, Sarmento tirou do porta-luvas um fato azul com capa vermelha e vestiu-o tão depressa que acabou por ficar com as cuecas (vermelhas) por fora. Saiu a voar do carro a uma velocidade tal que nem abriu a porta.
    Foi a minha magnífica visão de lince (embora tropa diga que não) que me permitiu vislumbrar um imenso "S" escrito no peito. E assim concluí que era o Sarmento. Afinal de contas quantos super-heróis há por aí com o nome começado por "S" e um traje tão ridículo?
    Mas voltando ao relato.
    Num ápice, entrou no outro carro, prendeu o cinto de segurança do condutor e regressou ao seu lugar. Assim evitou uma tragédia.
    «Porque não evitou ele o choque», perguntam vocês?
    «Simples», respondo eu, «se tivessem 200 litros de coca-cola no bucho também não voavam assim tão depressa, pois não?»

    Em frente!

    Como as pizzas foram feitas por uma pessoa que morou no país onde é raro ter-se menos de 350kg em cada perna é óbvio que não as conseguimos acabar. Resolvemos ir enfiando uns bocados nos bolsos e a armazenar nas bochechas, que nem esquilos. Assim já tínhamos almoço para o dia seguinte, que ia ser passado no vulcão dos Capelinhos!
    Quando o cozinheiro nos viu a ir embora, deixando os pratos vazios, quase teve um ataque de caspa. Era impossível fazer caber tanta pizza em ventres tão poucos distendidos. Bem reparou nas sacas, mas acho que julgou que fossemos brincar aos Pais-Natal.

    Essa noite foi passada sem sobressaltos. Eu, o MigMac e o Tonecas conseguimos manter a serração a funcionar toda a noite a todo o vapor. Na manhã seguinte acordámos cobertos de serradura, mas já não havia uma árvore de pé num raio de 2 km em torno da residencial! Pelo menos era assim que explicávamos os roncos medonhos que saíam dos nossos quartos durante a noite ao instrumento de tortura medieval a que o chefe chamava filho...

    Entretanto lá chegámos ao vulcão dos Capelinhos. Pelo caminho tivemos de enfrentar uma selva pavorosa («horrorosa», segundo o chefe). As mesmas precauções tomadas com os coelhos na Terceira tivemos de adoptar com os chimpanzés a balouçar das lianas (e o ocasional urso polar de monociclo). Foi uma trabalheira chegar ao outro lado. Os nossos batedores tiveram de afiar as catanas umas dúzias de vezes na ida e outras tantas na volta.
    Caso não saibam, há um sistema de sentidos obrigatórios esquisitíssimo naquela selva. Por isso não voltámos pelo caminho de ida.

    O vulcão dos Capelinhos aparenta ser um pedaço de deserto. Dizem as más línguas que um industrial da borracha sintética (que enriqueceu graças aos aeroportos, como já devem saber), para mostrar a sua fortuna, importou uma autêntica duna do Saara. Foi toda desmontada e cada grão de areia embalado e identificado pelo nosso conhecido Radical (que já tinha mostrado uma imensa competência nestes assuntos, como devem estar recordados). Foi tudo montado ali à beira-mar, mesmo ao lado do farol. Como não pediu licença a obra foi embargada e agora está ao abandono...

    Pois então estávamos no meio do nada. Aproximadamente entre nenhures e lado nenhum. Antes do vulcão havia por lá um porto, do qual sobram apenas umas casas meias soterradas e a rampa de acostagem. Já não faço a mínima ideia do nome daquilo, mas que era aborrecido, era.
    Passámos lá uns dias a ouvir o nosso magnífico rádio-farol das Flores (a sério, de 30 em 30 segundos F-L-O, em Morse) e a olhar o mar.
    Acabámos por não resistir à tentação e cada um foi até ao topo do que resta da caldeira para tirar umas fotografias e tentar aquecer a comida nas fumarolas. Como já devem imaginar o melhor que conseguimos foi queimar os dedos, porque a subida é tão extensa que a comida foi transformada em almoço volante...
    Engraçado, engraçado é que tudo é árido e coberto de calhaus vermelhos (local perfeito para a NASA filmar a próxima aventura espacial) excepto num dos lados, onde as gaivotas tem as suas alegres casinhas (uma cova no chão) e se divertem a cobrir tudo de guano de primeira qualidade.

    Depois destas incursões ao cone vulcânico já pouco havia que fazer. Andámos a saltitar nas rochas, tentando apanhar peixes à mão (e conseguimos, porque eles se disfarçavam de pedras - ficavam paradinhos nos sítios mais óbvios) e a fugir das ondas.

    No dia em que estive a azedar o leite às vacas, tanto o MigMac como o Tonecas foram experimentar as águas cálidas do Atlântico Norte. Mais ou menos como eu fiz na Terceira, mas de fato-de-banho. Tenho de admitir, são mais espertos do que parecem!

    Neste local conseguimos a prova fotográfica do maior nariz do mundo. Pertence ao Tonecas e quanto mais vermelho fica, maior parece. Como ele esteve todo o dia ao Sol, ficámos com a impressão que não  podíamos vir todos no mesmo carro. Enquanto esperávamos que a vermelhidão desaparecesse foi-nos contado algumas histórias engraçadas acerca do seu nariz. Dizia ele que o seu bisavô era Alemão e tinha conhecido um conde importante, um tal de von Zeppelin ou coisa parecida. Acontece que este conde era muito brincalhão e, certo dia, lançou um balão com a forma do nariz do antepassado do Tonecas, em jeito de brincadeira. Acontece também, que as coincidências andam sempre aos pares, que aquela coisa foi avistada pela tropa e começaram logo a pensar que era uma máquina voadora... o conde percebeu que ainda podia ganhar dinheiro com a história e... bom, o resto já conhecem.
    O bisavô do Tonecas acabou por se vir esconder em Minde, com vergonha do seu nariz e nunca viu nenhum proveito nos dirigíveis senão o de o fazer sentir gozado. O que vale é que em Minde ninguém sabia da história dos dirigíveis.

    Na parte Sul da ilha descobrimos uma comunidade de japoneses. Não é que tenhamos visto algum, mas todas ar árvores tinham sido podadas e armadas que pareciam bonsai gigantes... não percebemos lá muito bem o porquê desta técnica. E daí, também não percebemos porque estavam algumas capelas forradas a azulejos azul fluorescente. Toda aquela humidade misturada com o estrume de vaca deve causar alucinações dignas de um qualquer festa dos anos sessenta.
    Pertíssimo deste local (mas também lá é tudo perto) encontra-se a  pitoresca povoação de Varadouro. Lá se encontrava mais um ponto e um marco gastronómico da ilha. O restaurante do ex-emigrante no Texas cuja especialidade da casa era frango assado com batatas fritas. 
    Um pormenor engraçado (até pode não ser, mas depois de correr meia ilha à procura de comida e só encontrar frango na terra das vacas dá cabo do juízo a qualquer um) era uma pequena placa com uma pistola desenhada, à porta do restaurante, que rezava «Deixe lá o cão, preocupe-se é com o dono». Outro pormenor engraçado é que toda a gente daquele restaurante falava Português, até a sogra do filho do dono, que era americana (e é raro) mas insistiam em chamar as respectivas mães de «Mãá» (lembravam-me bezerros a chamar pelas respectivas progenitoras - que não passam de umas grandes vacas).

    Depois de (não muito) recomposto voltei ao meu ponto. Desta feita era no topo da caldeira do Faial.
    Estive lá dois dias com o MigMac. No primeiro fomos confrontados com nevoeiros tão densos que nem se via a frente do carro. Foi uma aventura procurar o marco geodésico no meio daquela sopa. Outra aventura relacionada com este nevoeiro foi quando foi necessário verificar as baterias do receptor.
    Saímos do carro, e apalpámos os cerca de 30 metros que nos separavam do marco o que demorou quase meia-hora, porque não fazíamos ideia para que lado ir. Quando lá chegámos, todos rasgados por causa das silvas deparámos com um inesperado guarda. Aproximadamente meia tonelada de bife tinha resolvido aterrar a uns metros do marco. Como não queria ser incomodado minou tudo e andámos a tentar afugentar o raio do boi sem pisar nada viscoso e fumegante.
    Ainda hoje estamos para perceber como é que se consegue não ver um boi (literalmente) e achar um marco geodésico no meio da caldeira.
    E agora perguntam «Mas se estava assim tanto nevoeiro, não conseguiam ver o Pico, não era?». Quer dizer, ver, ver, não víamos. Mas já estava gravado na nossa retina. Para qualquer lado que olhássemos ele estava lá! Não há fuga possível à presença do Pico com nuvens.
    Pronto, assim já não passo por mentiroso ao dizer que o Pico se via sempre e afinal não via!

    Ali mesmo ao lado do marco estavam as antenas de retransmissão da RTP, juntamente com as instalações de apoio. Por falar em apoio... quando o Tonecas e o MigMac lá estiveram, deixaram que o seu lado mais primitivo tomasse conta deles, fizeram algo que o Radical é incapaz e assim marcaram, efectivamente, o seu território.

    Enfim, esses foram os dias mais mexidos. Passo a explicar.

    Tínhamos dois pontos à nossa guarda. Pelo meio ficava a caldeira. Na caldeira andavam vacas a pastar que pareciam a maré (ora subiam, ora desciam), o que explicava porque nos apareceu um boi perto do marco...
    Sem nada que fazer, resolvemos tentar descer ao fundo da caldeira. Veio-se a revelar um feito impossível. Cada novo trajecto ia dar a um novo precipício. Vim a saber que antes dos capelinhos entrarem em erupção havia cinco caminhos para o fundo da caldeira. Durante a erupção foram-se quatro, porque a caldeira do Faial também entrou em actividade. O último tinha ficado quase destruído durante o último sismo e encontrava-se exactamente do lado oposto da caldeira, perto de um túnel que tínhamos visitado depois do trabalho do primeiro dia.
    Era um túnel muito curioso. Coberto de musgo, com uma curva no meio e uma fenomenal corrente de ar. Um local óptimo para se montar um túnel de vento sem investir nada!

    Um dos pormenores menos agradáveis da nossa estadia na caldeira foi o facto de termos ficado sem gasolina... pois. Descobrimos que o Fiesta em segunda não é das coisas mais económicas. Entre os almoços e a subida para a caldeira os míseros cinco ou seis litros que ainda devia ter no depósito evaporaram-se e já se andava a engasgar... chegámos a pensar que tínhamos o depósito roto. Afinal estava mesmo, senão não conseguíamos enchê-lo!

    Bem procurámos um buraco onde nos enfiar, quando telefonámos a pedir assistência, mas tal não foi possível. Tivemos de nos rebaixar à nossa incompetência e agradecer a amabilidade de não nos terem mandado vir a pé.

    No último dia acabámos por ir até ao Pico.

    Lá atravessámos o canal (onde não estava mau tempo, mas a viagem foi agitada) e rumámos à terra com nome de bolo que os Espanhóis exportam para cá - Madalena do pico. Fomos descarregados na terra que nos assombrava há dias, num dia nublado (o Pico tem sempre nuvens).

    Reparámos que a sala de pontaria do bunker estava tão bem camuflada que fomos incapazes de a localizar na falésia. Nem na viagem de vinda, em que estivemos com mais atenção.

    Como não tínhamos muito tempo resolvemos alugar um táxi e dar a volta à ilha. O percurso incluía a visita às antigas fábricas da baleia, a lagoa do capitão, os mistérios e as vinhas.

    O nosso taxista já era batido naquelas andanças pois, de vez em quando, ia parando e dizia «Costumam tirar fotografias daqui...» Nós saíamos e desatávamos a disparar. Parecíamos japoneses!

    No museu da baleia vimos um documentário sobre a caça à baleia. Foi hilariante a parte em que o arpoador (um trolha grandalhão) esteve a mostrar as suas calças de canalizador...
    De seguida fomos ver a fábrica da baleia, onde explicaram para que serviam as diversas coisas e como se transformavam as baleias em coisas tão úteis como farinha e óleo. Fez-me lembrar as composições da primária. A vaca é um animal muito útil porque nos dá a carne, a pele, o leite e os chifres. A baleia é um animal muito útil, porque nos dá o óleo e a farinha (para adubar).

    Findas as explicações o Tonecas disse «Pois!», porque ele gosta muito de dizer coisas.

    Passámos numa terra chamada Porto Cachorro, que tem este nome porque tem um calhau que se parece com um cão. Lá pudemos apreciar as magníficas praias do Pico - um monte de rochas afiadas muito apelativas a que tem sarna para se coçar...

    O nosso motorista levou-nos até à lagoa do capitão, no meio de um nevoeiro cerrado. Quando estava tudo branco do lado de fora do carro, parou.
    Saímos e preparámos as máquinas, mas não valia a pena. Não se via nada! Parecia a caldeira do Faial.
    Subitamente começámos a ouvir grasnar e, do meio do nevoeiro, surgiram patos aos milhares. Já tinham percebido que é muito melhor esperar pelos táxis de turistas do que andar à procura de comida. Segundo o taxista, nunca tinha visto o outro lado da lagoa, por causa do nevoeiro.

    Segundo a nossa chefe, o Pico está cheio de gente feia!
    Não posso concordar nem discordar. Poucos foram os Picarotos que vi. Mas ela é que andou por lá a espalhar pontos nas terrinhas todas e deve saber melhor que nós.

    O taxista não servia de exemplo para ninguém porque andava armado em capuchinho amarelo, com uma capa de plástico enfiada até às orelhas.
    Pensando bem, devia ser o homem-elefante e estava mascarado!

    Que é gente estranha, isso é. Têm uma ilha que dum lado tem sol, do outro tem sombra. Onde vivem? À sombra! Parece que moram em Chora-que-logo-bebes, sempre com verdete debaixo dos olhos.
    No lado solarengo têm umas coisas a que chamaram Mistérios de São não sei quantos. São uma espécie de parque florestais de Monsanto, mas em ponto mais pequeno.
    Parece que houve derrames de lava e aquelas zonas ficaram cobertas de rocha. Passados uns anos começou a vegetação a cumprir as suas funções e a ocupar território. E foi tão rápido que se tornou misterioso... enfim, não têm nada para fazer e inventam coisas destas.

    Lá voltámos ao Faial, não sem antes ter feito umas compras no Pico.

    O nosso chefe comprou lá uma garrafita com que veio a baptizar o aeroporto Almirante Gago Coutinho (Portela) de «Bolas, tinha de ser. Trago uma garrafa do Pico para a deixar cair ao chão em Lisboa!». Não sei porquê, mas acho o nome antigo mais simples de dizer. Talvez por ser menos longo.
    «Olhe, leve-me ao aeroporto "bolas, tinha de ser. Trago uma garrafa do Pico para a deixar cair ao chão em Lisboa", se faz favor.» não é nada jeitoso para se dizer quando se entra num táxi.

    A nossa viagem a ilha do Faial não teria ficado completa sem termos tirado uma fotografia junto do Marco do Pedreiro.
    É uma velha tradição dos Engenheiros Geógrafos que visitam o Faial, deslocarem-se até ao dito, fazer um sorriso Colgate e ver o passarrinho.
    Já há pinturas datadas do princípio do Século XVI, com uns fulanos com astrolábios a olhar para o local onde foi erigido o Marco.
    Desta feita o nosso chefe não nos quis acompanhar. Para chegar ao local é necessário subir uns duzentos metros. Uma coisa horrorosa!

    E quem vai ao Faial e não vai ao Peter ou à marina está a pedir um naufrágio. Como não sabemos nadar lá muito bem e a água está fria lá para aqueles lados, resolvemos não tentar o destino.
    Daí que fomos em alegre romaria beber um Gin Tónico ao Peter. O Tonecas encontrou a sua vocação: beberricador de gin, em copos altos. Nós ficámos a ver, que não gostamos muito de álcool. Chegada a meia-noite, os empregados começaram a distribuir uns copos de plástico e a vazar o conteúdo dos copos de vidro, porque iam fechar (e não queriam que lhes gamassem os copos). Ou, se calhar, transformavam-se em abóboras - o que não devia ter lá muita piada.

    Enfim, tudo o que é bom tem de acabar e era chegada a hora de regressar. Lá voltámos a fazer as malas e embarcar no avião.

    Chegámos a Lisboa depois de um vôo sem incidentes de maior, a não ser o Tonecas a dizer que os matava a todos (os 'xicanos). Bebeu demasiado gin e estava a dar-lhe a volta à cabeça...

    Fomos logo visitar o Jojoca ao hospital. Estava quase curado da sova que tinha levado quando perceberam que alguns escravos se ausentavam do trabalho. Nunca mais volta a ser o mesmo, mas não se curou da aerofagia.

    Espero que ainda estejam de pé, que só de olhar para tudo isto me dá vontade de me chamar nomes, porque devia estar estudar e andei a escrever as memórias (um pouco alucinadas, já sei).
    Espero não me ter esquecido de nada, porque todos os detalhes contam.

    

«Voltem sempre!»

 

Queluz, 20 de Janeiro de 2003
Daqui a uma semana já devo ser Engenheiro!