da Imortalidade

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ex-Capítulo Quarto

também conhecido como Imortalidade,
onde é revelado o segredo da vida eterna

 

    Acho que já consegui despertar as atenções.

    Não, não se trata do elixir da juventude. Há formas bem mais subtis de se conseguir a imortalidade, pelo menos durante algum tempo pois tudo cai no esquecimento mais cedo ou mais tarde.
    É necessário deixar algo que perdure, nem que seja apenas aos nossos olhos. Se o fizermos daremos o nosso tempo terreno por bem empregue.

        Foi com alguma amargura que assisti à morte de um amigo meu, com um cancro. Tinha 19 anos.
    O Pedro, que era o seu nome, já se havia resignado - tinha perfeita consciência de que não chegaria a velho. Nos seus últimos meses de vida conseguiu ganhar a imortalidade, visitando a sua família, que não era muita - ele era neto único -, e os amigos mais chegados; com o pretexto de que se queria lembrar deles.
    A sua maneira de atingir a vida eterna não foi muito espalhafatosa, mas resultou. Já se passaram quase três anos desde que morreu e toda a gente que visitou o recorda com saudade. A sua avó materna apercebeu-se, há uns meses da mensagem do neto. Desde então nunca mais a vi com o ar a que já nos tínhamos habituado, como se fosse uma habitante de Chora-que-logo-bebes, a mítica terra natal de João Sem Medo.
    Já começou a trabalhar para a sua imortalidade. A anterior figura sombria, que se arrastava, soluçando, de casa para o mercado e do mercado para casa passou a visitar as vizinhas adoentadas - coisa impensável antes do neto morrer, que ela era muito caseira. Passou a ter Paz interior...

    Soube que os pais já começaram a aceitar o facto de não deixarem descendência. Ambos artistas - gravadores de vidro -, voltaram ao trabalho, fornecendo copos trabalhados para casinos espanhóis. Julgo que trabalham com mais brio, pois todos se lembram do filho que perderam. Têm orgulho nele e isso basta para que se sintam imortais.

 

    O meu pai morreu no dia 28 de Março de 2000, depois de uma vida que nunca lhe correu como merecia. Ganhou a sua imortalidade no dia em que os seus colegas lhe prestaram uma das mais bonitas homenagens. Marcaram um palestra sobre os temas discutidos pelo Manuel Augusto em anteriores encontros. É óbvio que o tema descambou, como descambava sempre, para outros assuntos tanto ou mais importantes, mas era assim mesmo quando se reuniam com o meu pai.
    Se mais fosse preciso, tudo em mim é a prova de que ele atingiu a vida eterna. Por vezes dou por mim a tentar perceber quando é que o meu pai escreveu determinado texto, acabando por concluir que fui eu mesmo e confundi as caligrafias - imbecil!

    Apesar de ser agnóstico - a roçar o ateísmo - sempre que entro na Igreja de São Domingos sinto um calafrio. Era a igreja preferida do meu pai. Compreendo-o perfeitamente. Só ali consigo começar a perceber o Mistério da Fé. Não sei se é pelo contraste que o rebuliço da rua causa com a paz que se experimenta no interior, se é porque sim. Sinto-o.
    Ultimamente tenho ido a muitas Missas do Sétimo Dia, não por escolha, mas parece que desatou tudo a morrer... as cerimónias são frias, quase que tenho a impressão de serem gravadas. Decorrem em locais que não despertam nenhum nervo mais crente, fazem lembrar armazéns. Fico sempre com a ideia de que nas traseiras há um sujeito a juntar água a um pó, e de lá salta um padre.

    Voltando ao assunto. Sempre que entro na Igreja de São Domingos sinto-me acompanhado. Não é por um sujeito que morreu pregado há quase 2000 anos, é pelo espírito do meu pai.

 

    Sentindo-me tão bem acompanhado, já estou bem lançado para a imortalidade.

 

 

    

Queluz, 31 de Janeiro de 2002