Passatempos
À boleia pela Galáxia
Como andei à boleia pelo espaço
Podem perguntar-se como raio vim parar a este planeta
perdido no sector ZZ Plural Alpha da Galáxia e estar com este ar tão nauseado.
Asseguro-vos que já me perguntei vezes sem conta e continuo sem ser capaz de
responder com toda a certeza.
Se calhar é melhor começar pelo princípio...
Estava eu descansado da vida a construir um modelo da
ponte Vasco da Gama com esparguete (nota mental: da próxima vez não cozer o
esparguete) quando tocam à campainha de forma insistente. Era quase como se
tentassem apertar o botão ao ritmo da banda sonora do Super-homem (ou d'Os
Salteadores da Arca Perdida - já repararam que o ritmo é o mesmo?).
Fui abrir a porta com a cara com que recebo aquelas senhoras que me querem
sempre falar da revista que tem um leãozinho na capa:
-"Já reparou que o leãozinho não come o menino. Vai
ser assim o Reino do Senhor na Terra..."
Mas estou a divagar. Era o meu grande amigo Arthur Dent.
Quer dizer, não sei se parecerá bem chamar ‘grande amigo' a um fulano que
anda sempre de roupão, pantufas e uma toalha sebenta pendurada ao pescoço.
Lá o mandei entrar. Estava em pulgas por me contar alguma
coisa. Estava tão excitado que gaguejava ao ritmo a que tinha tocado à
campainha.
- "N-Nem-nem va-va-v-vais acre-acre-acre..."
Foi nesta altura que o interrompi com um estalo.
-"Obrigado. Nem vais acreditar quem veio à nossa Galáxia!"
-"Já me contas. Queres um chá? Acabei de ouvir a
chaleira assobiar."
-"Chá!? Não bebo um chá decente desde que conheci o
Zaphod. Venha de lá essa chávena. Tens também um farrapinho de leite?"
Depois de beber o chá, de ter repetido e de me ter obrigado
a ir fazer mais, lá me contou o que o tinha deixado tão excitado.
-"O maior comediante Vogoniano está a fazer uma digressão
pelo Universo. Vai passar pela nossa galáxia e vai actuar na gala de comemoração
da destruição da Terra v2.0!"
-"Espera lá um bocadinho! A Terra vai ser destruída
outra vez? Já começo a estar um bocadinho farto..."
-"Não te preocupes, o Zaphod já assinou a
contra-ordem."
-"Não me preocupo!? Foi esse imbecil que assinou a
ordem de destruição original!"
-"Já te disse para não te preocupares. Os Vogon já
tomaram conhecimento. Como têm é uma grande falta de imaginação nem foram
capazes de mudar o nome à gala. E logo eles que têm poetas tão bons..."
-"Bons?!? Só podes é estar a brincar. Da última vez
que ouvi poesia Vogon, recitada por ti, devo acrescentar, andei com náuseas e
vertigens durante duas semanas. Sem falar na vontade de me coçar sempre que
ouvia a frase 'as abelhas túrgidas rastejavam mudas'!"
-"Não deves ouvir isso muitas vezes..."
-"Nem imaginas o que se ouve em debates políticos. Mas
conta-me lá mais coisas desse comediante Vogon. Nem sabia que eles tinham
sentido de humor."
-"É uma história um pouco esquisita. Conto-te no
caminho."
-"Qual caminho?"
-"O Ford Prefect está quase a chegar com a nossa
boleia. Vai buscar uma toalha!"
-"O teu amigo esquisitóide vem aí? Aquele que parece
que nunca pisca os olhos? E que raio de ideia é essa de ir à boleia? E não
penses que troco uma das minhas toalhas lavadas por essa coisa sebenta que
trazes ao pescoço. Queres toalhas limpas, lava-as tu!"
-"A toalha é para ti. Agora despacha-te!"
-“Mas eu já tomei banho, para que raio quero a toalha?”
Não fui capaz de acabar o meu raciocínio. O Arthur
deu-me um sacão no braço, puxou-me até à casa de banho, deu-me uma toalha e
arrastou-me até ao quintal.
-“Estica bem o polegar. Ele deve estar a chegar!”
Ficámos os dois de polegar espetado para o céu, à
espera não sei bem do quê.
De repente um risco de fogo cruza o ar e pára mesmo por cima
das nossas cabeças no preciso momento em que eu já tinha as mãos cruzadas à
frente dos olhos e gritava “Mãezinha!”.
Não sei bem como, fomos sugados para o interior da nave. Não
dei por termos atravessado nenhuma porta ou escotilha, provavelmente porque
ainda tinha os olhos tapados...
Cheirou-me a desodorizante. Era tão activo que até fiquei
agoniado. A melhor descrição que posso fazer do cheiro era a de ser a poesia
Vogon para o olfacto.
-“Eck! Que cheiro é este?”
-“Estamos a bordo de uma nave Jatravartid. Este cheiro é
natural. Toma.”
E deu-me uma cópia do Guia da Galáxia para me esclarecer as
dúvidas. Fiquei muito mais descansado quando li, em grandes letras
tranquilizantes, ‘NADA DE PÂNICO’.
Abri o Guia e procurei por Jatravartid.
Após alguns momentos de espera fui presenteado com uma
magnífica apresentação acerca desta raça.
‘Descrição: No meio de todas as diferentes raças
existentes no Universo, tais como os humanóides, os reptilóides, os peixóides,
os arvoróides andantes e tonalidades de azul super-inteligentes há uma raça
deveras bizarra: Os Jatravartids.
Os Jatravartids são pequenas criaturas do planeta Viltvodle
VI com um número variável de braços, mas sempre em número superior a
cinquenta. Por esta razão foram a única espécie em toda a história do
Universo a ter inventado o desodorizante em aerossol antes da roda.
Crenças: Muitas raças acreditam que o Universo foi criado
por algum tipo de Deus ou pelo big bang. Os Jatravartid, no entanto, acreditam
que o Universo foi espirrado e projectado do nariz de um ser a que chamam O
Imenso Catarro Verde. Vivem em perpétuo terror da hora a que chamam d’A Vinda
do Grande Lenço Branco. Humma Kavula é o actual Grande Sacerdote desta crença.
A teoria d’O Imenso Catarro Verde não é muito aceite fora de Viltvodle VI.
Tecnologia: Apesar de ainda ser vulgar avistar bicicletas de
rodas quadradas no planeta Viltvodle VI, os Jatravartid já conquistaram o espaço.
A tecnologia que lhe permitiu atingir o espaço e viajar pela
Galáxia foi descoberta por acaso, na tentativa de construir uma lata de
aerossol suficientemente grande para durar a vida inteira de um Jatravartid médio.
Actualmente cruzam o espaço sem rumo definido já que uma lata de aerossol com
o tamanho de um pequeno asteróide é muito difícil de manobrar.
São facilmente detectadas por deixarem uma cauda semelhante
à de um cometa mas com um agradável odor a limão.
Sociedade: Apesar de serem seres muito sociais, não são
muito expansivos. Não apertam as mãos e não acenam. A última vez que se
registou um aperto de mãos entre um Jatravartid e um humano foi necessário
recorrer a uma equipa de desencarceramento pois alguns braços ficaram embaraçados
noutros devido a uma certa hesitação acerca de qual mão usar para devolver o
cumprimento.
NUNCA, mas NUNCA acenar a um Jatravartid. O ciclone gerado
pode ser fatal para ambos.’
Desliguei o Guia, já sabia o que precisava. Nunca pensei
em viajar à boleia com um amigo de roupão e pantufas. Muito menos com toda a
minha bagagem reduzida a uma toalha. Por sinal húmida.
Não sei se era pelo cheiro a desodorizante que me
anestesiava, mas estava a encarar esta história das viagens inter-espaciais com
uma certa intrepidez. Coragem, mesmo.
Devia ser do desodorizante com aroma a limão.
-“Arthur, para que raio trouxe eu uma toalha húmida?!?”
-“Já estava esquecido de te explicar isso... procura no
Guia a entrada acerca de toalhas.”
‘Descrição: A toalha é o objecto mais indispensável
de toda a bagagem de um viajante galáctico, especialmente se viajar à boleia.
A toalha é como a pedra da sopa da pedra. É imprescindível para se começar
qualquer coisa.
Utilizações: Ao trazer uma toalha ao ombro qualquer ser
insuspeito assume que também devo ter comigo escova de dentes, bolachas, bússola,
um materializador holográfico, bem como todas as outras coisas que um
aventureiro espacial leva nas suas viagens. Para além de achar que somos
possuidores de tudo isto, terá todo o prazer em nos emprestar qualquer artigo
que tenhamos “perdido” ou “avariado”. Isso e porque dá um jeitaço para
depois do duche não deixarmos um rasto molhado (enquanto estiver limpa, pelo
menos).’
Estava entretido a perceber a importância das toalhas nas
viagens intra-galácticas quando apareceu o esquisitóide chamado Ford Prefect e
mo desligou.
-"Estamos cheios de sorte. O aerossol tem de ser
recarregado no porto onde o Zaphod tem a nave." - dizia ele cheio de convicção
-"E o melhor é que nesse porto são famosos pelas suas festas! Podíamos lá
ficar uns dias e..."
Nesse momento faz um ar aparvalhado e, enquanto olha para mim
de lado, pergunta:
-"Arthur, quem é este cromo? Não me digas que o
trouxeste à boleia... Sabes perfeitamente que só temos dois copos."
-"Já nos conhecemos... Na inauguração da Terra
2.0." - atalhei eu.
-"Tens de desculpar o Ford. Bebe sempre até ao
esquecimento. Especialmente quando é de borla."
Enquanto lhe tentava explicar ao certo quem era, o gigantesco
aerossol onde viajávamos aproximava-se do seu destino, o planeta SKBLZZZ (nem
os skblzzzianos sabiam ao certo como se pronunciava).
A manobra de aterragem foi concluída no meio de uma
gargalhada geral do pessoal do porto. É que a lata estava quase vazia e nos
momentos finais já só fazia PFT-PPPPFT-PSSS-PFFFFFFFF... PSSS...
Com tamanhas falhas no motor da nave estávamos todos
alagados em suor, o que vale é que também estavamos encharcados de
desodorizante com aroma a limão e assim ninguém dava por isso.
Dirigimo-nos para a nave que nos iria levar até ao espectáculo,
a do presidente da Galáxia, Zaphod Bebblebrox que, neste momento, andava de um
lado para o outro a tentar saber em qual das cabeças tinha os óculos. O
problema é que ambas estavam bêbadas.
-“Vá, estica o dedo!” – gritava o Arthur enquanto
me empurrava na direcção da nave mais psicadélica que tinha visto até então
(não é que tenha visto muitas, mas suponho que esta deveria vir como exemplo
na secção de naves psicadélicas do Guia).
-“Mas ele não está à nossa espera?!? Porque raio tenho
de pedir boleia?!?”
-“Claro que não. Ainda por cima odeia dar boleias. Se bem
me lembro, costuma perseguir os passageiros clandestinos com aquele raio que faz
cócegas...” – responde Ford.
-“Suponho que não seja lá muito sensato pedir boleia, então.”
-“Se lhe pagares um copo ele acalma-se. Tens é de ser rápido
a esquivar-te às primeiras descargas!”
-“Muito melhor...” – suspirei eu nada descansado. Foi
nessa altura que reparei que estavam os dois atrás de mim a fazerem-se
pequeninos. E só eu tinha o polegar esticado...
A seguir só me lembro de sentir uma imensa vontade de
rir. O sacana do Zaphod, mesmo perdido de bêbado tinha boa pontaria. Acertou-me
três vezes antes sequer de conseguir acabar de dizer:
-“Detesto clandestinos, todos fora! Não dou boleias a
ninguém!”
Felizmente que o Marvin apareceu de um canto, com o seu ar
desolado, e interrompeu a festa de cócegas.
-“Sinceramente, já não se pode enferrujar em paz sem que
haja uma série de energúmenos a fazes barulho...”
-“Marvin, salva-nos!” – gritou Ford.
-“Salva-nos, salva-nos. Só sabem pedir que os salve. Eu,
com um cérebro do tamanho de um pequeno sistema estelar e pedem-me que os
salve...”
E, delicadamente, empurra Zaphod na direcção do bar. Zaphod
vê uma garrafa aberta e esquece-se dos clandestinos (nós). Encontra os óculos
dentro de um copo e exclama:
-“Baril! Já posso ir ver o pôr-do-sol!”
-“O pôr-do-sol... deprime-me...” – acrescenta Marvin.
Entretanto recuperámos a compostura e fomos preparar a
nave para ir ver o tal espectáculo que tinha deixado Arthur tão excitado.
Zaphod estava a brindar consigo mesmo. Um copo em cada mão e só duas bocas
estavam a deixá-lo um pouco confuso, por isso não nos prestava grande atenção.
-"Voltando ao que me querias dizer a caminho de não
sei onde. Eu julgava que os Vogon não tinham sentido de humor." –
interrompendo a sessão de caretas que Arthur fazia enquanto tentava perceber
onde se introduzia o destino no computador de voo.
-"E não têm."
-"Então que história é essa de um comediante Vogon?"
-"Ele não é bem bem um Vogon. Quer dizer, é parecido
com aquela barriga e aquele nariz e tudo..."
-“Há alguém parecido com um Vogon? Que nojo!”
-“Mas é tão parecido que, durante anos, acreditou que era
um Vogon! Depois lá lhe disseram que tinha sido encontrado à porta de uma família
Vogon já com os formulários de adopção preenchidos em quintuplicado. Foi
criado como um Vogon. A única coisa que o distingue verdadeiramente é que tem
sentido de humor.”
-“Mas vale a pena ver?”
-“Oh sim, se vale! É como a poesia Vogon, mas com
humor!”
-“Só de pensar, sinto-me enjoado. Só espero que não seja
quem eu penso que é...”
-“Quem?”
-“Deixa, estava a pensar alto.”
Com uma pancada seca num botão que dizia “CARREGAR
AQUI”, Ford Prefect faz a nave partir rumo ao espectáculo. A Turbina de
Improbabilidade entra em acção e o mundo fica um pouco mais estranho.
Sinto vontade de comer sardinhas em molho de iscas.
Conto seis pés em cada mão. E mais um na orelha esquerda.
Batem à porta e vou abrir. Eram 12 macacos para o Arthur.
O estômago desce-me aos pés (acho) e dou por mim montado
num hipopótamo que oscilava entre o azul-cueca e um tom de rosa semelhante ao
do Palácio de Belém.
Tudo pára de repente.
-“Foste tu quem me mexeu nos óculos?” – pergunta a
cabeça esquerda de Zaphod à cabeça direita.
-“Improbabilidade Infinita. Tudo está normal.” –
pronuncia o computador com um sotaque de Rio Maior.
-“Arthur, que te queriam?”
-“Queriam saber a que horas era a próxima representação
do Frei Luís de Sousa...”
-“Ah, pois... faz sentido.” – disse eu, à falta de
melhor para dizer.
Reparei nesse momento que já estávamos sentados num belo
camarote na sala de espectáculos.
As luzes começaram a baixar e um holofote iluminou um círculo
branco no centro do palco.
As cortinas começaram a agitar-se e toda a gente abafou as
conversas.
-“Chiu, que o espectáculo vai começar!”
-“Como é que o artista se chama, mesmo?”
-“Vogon Nunik Markl, porquê?”
-“Acho que vou vomitar...”
Eis que o artista aparece no centro do palco e começa a
falar. Não resisto, sinto-me muito enjoado e perco os sentidos.
Quando finalmente volto a mim reparo que estou sozinho. O
Zaphod deve tê-los metido noutra alhada e tiveram de se pisgar. Podiam ter tido
a decência de me deixar na Terra mas não, fiquei neste planeta perdido.
Vasculho os bolsos e só encontro um bilhete de metro usado.
Após revistar todos os restantes bolsos três vezes concluo que, para além da
toalha, não tenho absolutamente mais nada... Lindo.
-"E agora como é que vou para casa?" - murmuro
para os meus botões.
-"Da única maneira que sabes, obviamente." -
responderam eles, para meu espanto.
Sendo assim, resignei-me. Pus a toalha ao pescoço e estiquei
o polegar.
E não é que funcionou?
Ao meu lado pousou uma nave esférica, um pouco maior que
um automóvel, com um letreiro que dizia “INATEL – parque de campismo”.
A porta abriu-se e surgiu um sujeito de bigode e uma camisola
interior de alças cheia de nódoas.
-“Quer boleia?”
-“Errr... sim... quer dizer... vai para os lados da Terra?
-“Eu não, mas tenho um primo que é capaz de ir para lá
daqui a uns dias, se quiser deixo-o com ele.”
Sem nada a perder, aceitei.
O sistema de propulsão desta nave era original, para não
dizer mais. Consistia num grelhador de sardinhas, construído a partir de um bidão
de óleo, carregado de carvão em brasa. Pelo que percebi, escrevia-se o destino
numa sardinha, punha-se a assar e, quando já estava pronta, chegávamos ao
destino. Era uma viagem muito mais agradável do que com a Turbina da
Improbabilidade, e saborosa também.
Como tinha a toalha, consegui que o sujeito do bigode me
emprestasse umas quantas sardinhas assadas e umas fatias de pão (porque tinha
perdido as minhas num qualquer planeta). Assim pude entreter o estômago
enquanto esperava pela roulotte do primo do bigodaças.
Resumindo, foi assim que aqui cheguei. Estou um bocado
enjoado porque comi sardinhas de mais.
Acho que se calhar não volto já à Terra. Começo a
gostar de viajar só com uma toalha.
-“Olha, uma nave! Deixa cá esticar o polegar!”
Queluz, 11 de Novembro de 2006
852 anos após o nascimento de D. Sancho I.