Passatempos
Little Britain
O
verdadeiro cromo português chama-se Zé Luís. Usa bigode que costuma ter
restos de sopa. Tem um crucifixo por cima da cama. No braço direito tem uma
tatuagem muito desbotada de uma mulher nua e que diz "Amor de Mãe / Angola
1969".
Mora num antigo bairro clandestino dos arredores de Lisboa,
numa casa vermelha e revestida do tipo de azulejos que se podiam apreciar nas
casa de banho de mau gosto dos anos 70.
É visto quase sempre de meias brancas, sapato de vela e calças
de fato-de-treino a passear nos centros comerciais deste pequeno rectângulo à
beira-mar plantado. Como pesa 130 kg, não é um espectáculo agradável.
Costuma ficar em frente das lojas de electrodomésticos a ver a bola enquanto a
mulher vai ao supermercado.
O que ele
queria mesmo era ter um emprego. Por enquanto só vai tendo trabalho. Já foi
servente, canalizador e ladrilhador. Neste momento é camionista e, nas horas
vagas taxista.
No camião ouve a Renascença e anda de camisola interior de
alças, com o fio de ouro orgulhosamente exposto nos pêlos do peito. É adepto
ferrenho do Benfica e tem quatro exemplares d'A Bola envelhecidos entalados
entre o tablier e o pára-brisas. Curiosamente são todos acerca de uma qualquer
cabazada que o Benfica deu ao Sporting. Pendurado no espelho tem um galhardete
do Benfica e um CD do Tony Carreira. Na parte de trás da cabina tem a bandeira
nacional comprada nos chineses e um calendário do Talho n°125 com uma gaja
boazuda toda descascada. Usa um colete fluorescente nas costas do banco. Todos
os dias se benze e dá graças a Deus por não ter nenhum filho lagarto. Chama
nomes ao treinador sempre que o SLB perde, empata ou ganha.
É alérgico a telemóveis desde que deixaram de ter antena.
Se não se pode usar para coçar o interior das orelhas então é um objecto inútil.
E esta linha de raciocínio explica a camada de cera que reveste as pontas das
chaves de casa e do camião. A bela da unhaca do mindinho também ostenta uma
saudável cor amarela.
É o maior apreciador de sandes de courato lá do bairro e em
casa há sempre uma grade de minis dentro do frigorífico. É reposta dia sim,
dia não.
É casado com uma operária fabril que costuma aparecer na
televisão de bata azul com florinhas a reclamar dos salários em atraso.
Chama-se Maria qualquer coisa e deu-lhe cinco filhos: Manel, Quim, Zé, Necas e
Maria. Quatro são dele. Ele desconfia que nenhum seja dele.
Nasceu algures no Ribatejo e veio para Lisboa na Zundapp que
o pai lhe tinha dado quando voltou de África. No caixote de fruta que tinha
amarrado atrás trouxe um saco com meias e um garrafão de tinto.
Ainda tem o capacete com orelhas de napa e uma tira de xadrez
a toda a volta. Hoje em dia serve para pôr a comida do Tejo, um rafeiro
cor-de-meia-velha que lhe abandonaram no quintal.
Os momentos altos do seu dia são dois. O primeiro é aquilo
a que chama de "cagada matinal", que consiste em ler A Bola sentado na
sanita e a fumar SG Gigante enquanto vai dizendo "aaarrggghh.... Este é pró
Sporting!". O segundo é chegar a casa, dormir em frente à televisão e
reclamar "Não desligues isso que eu estava a ver!".
Detesta espanhóis, coisas espanholas, Espanha e arroz à
valenciana mas, sempre que vai ao Algarve nas férias de Verão, aproveita e
enche o depósito do Seat Ibiza em Ayamonte (a terra mais feia do mundo,
diga-se).
A sua tirada mais famosa é "Então não se está mesmo
a ver que é penalty!?!"
Este é o verdadeiro cromo português. Espero que o reconheçam da próxima vez que o virem.
Queluz, 11 de Novembro de 2006
431 anos depois de Leibniz ter demonstrado o cálculo integral.