Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

15  01 2009

Os tempos estão a mudar

Na última visita que fiz à Cabala, aquela terra que nos prende ao rio de uma forma estranha, fui recebido com um chorrilho de impropérios digno do Capitão Haddock, mas mais vernáculo.

«LITO, MEU FILHO DA PUTA! CABRÃO, ANDA CÁ! ANDA CÁ, CARALHO! LITO!»

Mas o Lito não vinha.

«ANDA CÁ, CABRÃO!»

E o Lito continuava parado, lá ao longe, receoso.

«SE NÃO VENS CÁ VOU FAZER QUEIXA À POLÍCIA E ELES DEPOIS FODEM-TE, MEU GRANDE CABRÃO! ANDA CÁ! AQUILO NÃO SE FAZ À MIÚDA, CABRÃO DE MERDA!»

O Lito continuava indeciso. Eu esperava por quem me vendesse gasolina e estava um pouco a mais naquela conversa. Nisto, o sujeito que tanto gritava, virou-se para mim e num tom muito polido e em voz baixa pediu-me desculpa.

«Peço desculpa, mas isto é mesmo assim. O que ele fez não se faz a ninguém.» E, sem qualquer intervalo, virou a cabeça e continuou. «ANDA CÁ, FILHO DA PUTA! VOU CHAMAR A POLÍCIA E ELES TRATAM DE TI!»

Juntou-se mais gente. Queriam saber o que se passava.

«Aquele cabrão encostou uma faca à barriga da miúda. FILHO DA PUTA! Ameaçou que a matava. Mas isto não fica assim. Isto agora é crime. Vou à polícia apresentar queixa e o cabrão vai preso. LITO! VEM CÁ, CARALHO! FODA-SE QUE ÉS ESTÚPIDO!» Novamente, num tom muito calmo pediu desculpa. «Peço desculpa, mas uma pessoa emociona-se e depois só saem disparates…»

A sobrinha do senhor, que fazia umas três vezes o tamanho do Lito, estava envergonhada a um canto. Quase diria que estava corada, não fosse a pele escura não deixar perceber. O Lito, quando bebe, dá-lhe para isto… os restantes participantes concordavam e aprovavam a ideia de chamar a polícia, para ver se ele aprendia.

Os vinte litros de gasolina que comprei já estavam no depósito e achei por bem ir-me embora, antes que desatasse a rir.

À saída da Cabala, tive a certeza de que os tempos estão mesmo a mudar. Já não se faz justiça pelas próprias mãos, recorre-se à polícia. Pelo menos nalguns assuntos, confia-se na autoridade. E isto é um bom sinal. Os tempos incivilizados da guerra civil estão a terminar.

Mas não sei se o Lito foi ter com o tio da rapariga…

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “Os tempos estão a mudar”

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  1. “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades…” e ainda bem que assim é, desde que seja para melhor.

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