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07 2022

Jogar às cartas e comer feijão

Passada mais de uma década da minha aventura angolana, partilho agora o gabinete com um doutorando angolano do Lubango.

Tem sido um verdadeiro prazer poder partilhar as impressões de Angola já filtradas pela memória com quem me pode explicar melhor alguns pormenores que me passaram ao lado.

Calhou em conversa dizer-lhe que muitas vezes vi pessoas a jogar damas na rua e, menos frequentemente, xadrez. No Huambo vi jogar kiela (ou uela, em Umbundu) na avenida do aeroporto. Nessa mesma cidade, vi um tabuleiro de xadrez para jogar de pé, com peças de 60 cm de altura. No entanto, e apesar de muitas vezes encontrar baralhos de cartas depenados nas valetas ou cantos de quintal, nunca vi ninguém a jogar às cartas.

Fiquei a saber que jogar às cartas é uma tradição durante os óbitos. Joga-se noite dentro todos os dias, até ao funeral, o que pode demorar bastante tempo se houver familiares que venham de longe.

Outra das imagens de marca dos óbitos é o feijão. Não pode haver um óbito sem que se coma feijão.

Um cumprimento habitual a quem não se vê há muito é:

– Pensei que fosse jogar às cartas e comer feijão da próxima vez que te visse.


21  08 2014

Continuidade cultural sem rótulo

O calendário diz-me que estamos no séc. XXI. A memória guia-me desde a década de 1980 até aos dias de hoje sem interrupções, numa transição gradual e sem grandes sobressaltos.

Com a entrada na C.E.E., tudo o que soava a tradicional ou antigo passou a estar fora de moda. Não era fino usar regionalismos, ter orgulho nas tradições locais ou sequer preferir a gastronomia típica. O bom e bonito vinha do estrangeiro, bem embalado, com etiquetas assegurando ser “made in país avançado”. O país inteiro se tornou emigrante, dizendo que lá fora é que era bom quando regressa nas férias de Agosto. Mas como todos os emigrantes que regressam, são as saudades do que faz o nosso país ser diferente do estrangeiro que nos fazem voltar às nossas raízes.

Agora que se percebeu que tentar copiar o queijo flamengo é parvo, porque entre um flamengo da Flandres ou um flamengo de Sacavém a diferença é que um é original e o outro é a cópia, e, acima de tudo, podemos fazer queijos diferentes, só nossos. Agora que se percebeu que nos dá mais prazer um queijo de Serpa ou de Nisa do que um Emmental, começamos também a perceber não falamos só de queijo e que esta ânsia de apagar o que é nosso nos levou a perder três décadas de continuidade cultural.

A identidade cultural de um povo define-se através da partilha das tradições entre gerações. Os gostos educam-se, mas para isso é necessário que haja quem os possa transmitir e, acima de tudo, a quem os transmitir.

Actualmente, ouve-se muito dizer que a aposta no futuro passa por valorizar o que há de mais característico no país, quer seja em produtos típicos, quer seja com a própria cultura. Institucionalmente, para além de legislar sobre quais as taxas a pagar para poder produzir enchidos ou mel, nada mais é avançado.

Ainda assim, há quem resista e tenha orgulho na sua História e cultura. Há quem insista em usar os regionalismos com que cresceu que lhe transmitem significados mais precisos que os chavões ouvidos na televisão. Um pouco por esse Portugal profundo se vai vendo um regresso à identidade cultural que nos distingue do que vem embalado e etiquetado.

Guardiões da Lua
Guardiões da Lua – Quarta-feira, Sabugal

Na povoação de Quarta-feira, sita nos confins da Cova da Beira, mas já na Beira Alta, há um grupo de teatro amador de seu nome Guardiões da Lua. Todos os anos encenam uma peça, quase sempre escrita pelo encenador seu João Reis, que procura preservar e partilhar um pouco do que é a identidade do lugar. É genuíno. Não vem rotulado.


16  06 2014

Índios, quase-índios, favelados e outras castas do Brasil

Segundo me foi dado a perceber, no Brasil há um sistema de castas não oficial. A hierarquia é simples, tem apenas dois níveis: o de cima e o de baixo.

No nível de cima estão os ricos, uma classe com rendimentos estratosféricos quando comparados com os demais. Dizem os entendidos que se reconhecem por usarem meias quando não estão a passear de helicóptero.

O nivel baixo divide-se em citadinos de classe média, que olham com desdém para os que lhes estão mais abaixo, e os outros, que ora invejam os citadinos, ora os ignoram majestaticamente. Os favelados são os que invejam a classe média, nem que seja pelas horas a menos que perdem a caminho dos empregos. Os do centro da cidade abusam desta mão-de-obra baratíssima, mas desconfiam deles, talvez porque sempre ouviram dizer que nas favelas só há ladrões e traficantes.

As classes do nível inferior englobam-se todas na categoria de pobre, porque a classe média, apesar de pensar que se destaca dos pobres, nunca chegará a entrar na categoria superior, nem que seja pela falta do helicóptero ao lado da piscina ou por algumas centenas de milhar de cabeças de gado a menos. Reconhecem-se porque nem sempre andam só de chinelos.

Fora das cidades, o panorama muda apenas por são todos pobres. E, aos olhos dos citadinos, todo o camponês, ou por extensão, quem não viva na cidade, é quase índio. Os índios vivem na mata, a gente civilizada vive na cidade, quem não mora na mata nem na cidade é quase índio, nunca quase civilizado, por estranho que pareça.

Mesmo não o sendo de facto, os pequenos agricultores que vivem isolados, analfabetos em vários graus, que não se misturam quando vão à cidade a largos intervalos e que se escondem atrás da casa quando se aproximam forasteiros, ganham de imediato o estatuto de índio. Não são índios de verdade, porque esses têm uma categoria à parte que lhes garante inimputabilidade dentro das reservas (o que assusta de morte os forasteiros), mas a quase reclusão e a distância ao mundo dito civilizado implica que na cidade os vejam como selvagens.

Jumento
Um quase-índio

O quase-índio beneficia do programa de electrificação rural e, nas zonas áridas, das cisternas instaladas ao lado da casa para recolher água da chuva. Tem uma casa com paredes de adobe ou de taipa, com uma cortina a fazer de porta. Fala com o sotaque carregado de quem não tem hábito de falar com forasteiros, difícil de entender, mesmo para quem viva na cidade mais próxima. Bebe quase mais cachaça do que cerveja, pelo simples motivo de que a cachaça não precisa de estar fresca para se beber. Come coisas estranhas, que deixam os citadinos com cara de enjôo. Julga-se feliz, como a ceifeira que canta.

Todas estas castas têm hábitos e culturas muito diferentes, embora a novela das sete e o futebol os una umbilicalmente.

 


10  04 2014

ILCao

nAO

Não concorda com o AO e deseja subscrever a ILC? Simples, bastam dois passos:

1º – Versão PDF ilcassinaturaindividual.pdf ou Versão Word ilcassinaturaindivmanual.doc

2º – Remeter para Apartado 53, 2776-901 Carcavelos (se por CTT)

A ILCao, não é uma Petição, é um Projecto de Lei redigido e submetido a aprovação parlamentar por parte de um grupo de cidadãos, sendo esta a primeira sem qualquer patrocínio ou instituição subjacentes. A ILCao, é a forma directa e apartidária de exprimir a vontade popular à Assembleia da República.

A ILCao está redigida e publicada. Todas as informações estão disponíveis no sítio oficial http://ilcao.cedilha.net/

Não se resigne, mova-se!

via http://ilcao.cedilha.net


10  01 2014

A excepção cultural francesa – Plim!

Como forma de defenderem o que acham ser verdadeiramente seu, os franceses costumam invocar a excepção cultural. Dizem que são diferentes porque encaram a sua interpretação de arte ou bom-gosto como algo subtilmente mais refinado que as interpretações dos demais bárbaros que os rodeiam. Está-lhes tão inculcado no sangue como o desenrascanço nos portugueses. Uns e outros crescem a ouvir isso e acabam por acreditar que lhes é inato. A verdade é que uns e outros têm razão para defender as suas excepções culturais. Os portugueses são, de facto, desenrascados, e o franceses encaram as coisas de forma diferente, nem que seja porque se acham excepcionais – e por vezes são-no.

O que os franceses mais adoram são os pequenos detalhes. Talvez seja porque o trauma de serem a excepção cultural os obrigue a mostrá-lo em cada canto, ou somente porque cada um quer provar que é mais excepcionalmente francês que o anterior.

O exemplo mais famoso desta obsessão pelos pormenores talvez seja a alta cozinha francesa. Falo na alta-cozinha porque é essa a destilação gastronómica do que entendem ser a excepção cultural. A cozinha do dia-a-dia é relativamente parecida com a dos restantes europeus, se bem que haja tendência para incluir um toque final que distinga o cozinheiro.

A fama da alta-cozinha é a do prato vazio com três ervilhas e uma raspa de cenoura a formar um quadrado que rodeia uma gota de molho colorido. Nada se costuma pensar do paladar, ou da combinação dos ingredientes no palato, que é quase sempre agradável. O que nos fica é esta imagem do prato vazio com as ervilhas calibradas e dispostas no prato a régua e esquadro. Fica-nos ainda a sensação de que o cozinheiro se está a esforçar demasiado para mostrar que é francês e  excepcional, ou excepcionalmente francês, que é quase o mesmo.

Não se nota a excepção cultural em marcha só na cozinha. Está em todo o lado. Se, num qualquer projecto houver uma pausa de alguns segundos para reflectir, é seguro que alguém se encarregará de aproveitar o tempo para refinar a orientação das cabeças de parafuso e garantir que o reflexo das luz que lhe incide forme um padrão agradável.

Os franceses talvez já não o notem, mas uma viagem de transportes públicos para um estrangeiro torna-se cansativa não pelo trajecto, mas pelo constante bombardear de excepções culturais, de pormenorzinhos que demonstram termos o prazer de viajar num eléctrico ou autocarro desenhado por um excepcional francês (ou francês excepcional) que se preocupou em garantir que as três ervilhas eram de facto as melhores ervilhas do mundo (francesas, certamente). Não é que haja ervilhas nos autocarros, mas aquilo que é comum em muitas partes do mundo, sofre um subtil toque francês, como os avisos das paragens seguintes.

Na maioria dos sítios, estes avisos podem, ou não, ser precedidos de um sinal sonoro, mais ou menos parecido com um sinal horário. Se tivermos sorte, uma sequência de duas ou três notas antecede o nome da estação e respectivas correspondências. Em França, há um pequeno trecho musical que tenta, de forma excepcional claro, captar a essência da viagem e comprimi-la numa cápsula de refinamento e bom-gosto com menos de dois segundos.

Concorde
A excepção francesa

Com sorte, termina por aqui. Com algum azar, viaja-se num dos eléctricos modernos de Brest onde, a cada paragem, se tem direito a um ou dois trechos musicais diferentes consoante a direcção da viagem, para que sejam harmoniosos com os anteriores. Cada um destes trechos procura sintetizar a emoção de ser depositado no cais respectivo envolto numa onda de serenidade. Entre paragens, somos banhados por uma suave luz azul, proveniente de grandes luminárias em forma de aquário no tecto, qual manto diáfano de tranquilidade e contemplação. Para além disso, o nome das estações é repetido duas vezes, com entoações diferentes para que não haja problema de compreensão de pronúncias. Adicionalmente, para que não se tornem viagens monótonas, a ordem das entoações usadas também varia. E, demonstrando uma excepcional atenção aos detalhes, ao longo da viagem as vozes alternam de forma aleatória entre masculino e feminino. São verdadeiras ervilhas sonoras polidas com camurça e dispostas a régua e esquadro por um excepcional cozinheiro francês. De vez em quando, ouvem-se gravações em Francês, Inglês e Bretão. São vozes serenas e compreensivas, verdadeiros pináculos da compaixão em forma de aviso de correspondências. É enlouquecedor.

Não contentes com isso, o projecto destes eléctricos modernos procura manter-se fiel à tradição. Em quase todos os eléctricos do mundo, o sinal sonoro de aviso é uma campainha que os torna inconfundíveis. A interpretação francesa também inclui uma campainha, mas usar uma como a dos outros seria uma ofensa à excepção cultural, por isso é necessário garantir que a nova campainha seja um bom aviso e, simultaneamente, capaz de nos inundar com uma onda de bom-gosto. Em vez da campainha usam uma gravação de um sino, certamente percutido com delicadeza no ponto certo por um pequeno martelinho de pau-preto – Plim! É refinado. É chique. Plim! Não assusta as pessoas nem os pombos. Plim! É fino. Plim! Empresta uma certa serenidade aos ruídos da cidade. Plim! Plim! Plim! Não transmite qualquer urgência. Plim! Só serenidade. Plim! Ninguém o ouve. Se ouve, não lhe liga. Póóó! Pelo sim, pelo não, também instalaram uma buzina de ar.

 


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