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10  01 2014

A excepção cultural francesa – Plim!

Como forma de defenderem o que acham ser verdadeiramente seu, os franceses costumam invocar a excepção cultural. Dizem que são diferentes porque encaram a sua interpretação de arte ou bom-gosto como algo subtilmente mais refinado que as interpretações dos demais bárbaros que os rodeiam. Está-lhes tão inculcado no sangue como o desenrascanço nos portugueses. Uns e outros crescem a ouvir isso e acabam por acreditar que lhes é inato. A verdade é que uns e outros têm razão para defender as suas excepções culturais. Os portugueses são, de facto, desenrascados, e o franceses encaram as coisas de forma diferente, nem que seja porque se acham excepcionais – e por vezes são-no.

O que os franceses mais adoram são os pequenos detalhes. Talvez seja porque o trauma de serem a excepção cultural os obrigue a mostrá-lo em cada canto, ou somente porque cada um quer provar que é mais excepcionalmente francês que o anterior.

O exemplo mais famoso desta obsessão pelos pormenores talvez seja a alta cozinha francesa. Falo na alta-cozinha porque é essa a destilação gastronómica do que entendem ser a excepção cultural. A cozinha do dia-a-dia é relativamente parecida com a dos restantes europeus, se bem que haja tendência para incluir um toque final que distinga o cozinheiro.

A fama da alta-cozinha é a do prato vazio com três ervilhas e uma raspa de cenoura a formar um quadrado que rodeia uma gota de molho colorido. Nada se costuma pensar do paladar, ou da combinação dos ingredientes no palato, que é quase sempre agradável. O que nos fica é esta imagem do prato vazio com as ervilhas calibradas e dispostas no prato a régua e esquadro. Fica-nos ainda a sensação de que o cozinheiro se está a esforçar demasiado para mostrar que é francês e  excepcional, ou excepcionalmente francês, que é quase o mesmo.

Não se nota a excepção cultural em marcha só na cozinha. Está em todo o lado. Se, num qualquer projecto houver uma pausa de alguns segundos para reflectir, é seguro que alguém se encarregará de aproveitar o tempo para refinar a orientação das cabeças de parafuso e garantir que o reflexo das luz que lhe incide forme um padrão agradável.

Os franceses talvez já não o notem, mas uma viagem de transportes públicos para um estrangeiro torna-se cansativa não pelo trajecto, mas pelo constante bombardear de excepções culturais, de pormenorzinhos que demonstram termos o prazer de viajar num eléctrico ou autocarro desenhado por um excepcional francês (ou francês excepcional) que se preocupou em garantir que as três ervilhas eram de facto as melhores ervilhas do mundo (francesas, certamente). Não é que haja ervilhas nos autocarros, mas aquilo que é comum em muitas partes do mundo, sofre um subtil toque francês, como os avisos das paragens seguintes.

Na maioria dos sítios, estes avisos podem, ou não, ser precedidos de um sinal sonoro, mais ou menos parecido com um sinal horário. Se tivermos sorte, uma sequência de duas ou três notas antecede o nome da estação e respectivas correspondências. Em França, há um pequeno trecho musical que tenta, de forma excepcional claro, captar a essência da viagem e comprimi-la numa cápsula de refinamento e bom-gosto com menos de dois segundos.

Concorde
A excepção francesa

Com sorte, termina por aqui. Com algum azar, viaja-se num dos eléctricos modernos de Brest onde, a cada paragem, se tem direito a um ou dois trechos musicais diferentes consoante a direcção da viagem, para que sejam harmoniosos com os anteriores. Cada um destes trechos procura sintetizar a emoção de ser depositado no cais respectivo envolto numa onda de serenidade. Entre paragens, somos banhados por uma suave luz azul, proveniente de grandes luminárias em forma de aquário no tecto, qual manto diáfano de tranquilidade e contemplação. Para além disso, o nome das estações é repetido duas vezes, com entoações diferentes para que não haja problema de compreensão de pronúncias. Adicionalmente, para que não se tornem viagens monótonas, a ordem das entoações usadas também varia. E, demonstrando uma excepcional atenção aos detalhes, ao longo da viagem as vozes alternam de forma aleatória entre masculino e feminino. São verdadeiras ervilhas sonoras polidas com camurça e dispostas a régua e esquadro por um excepcional cozinheiro francês. De vez em quando, ouvem-se gravações em Francês, Inglês e Bretão. São vozes serenas e compreensivas, verdadeiros pináculos da compaixão em forma de aviso de correspondências. É enlouquecedor.

Não contentes com isso, o projecto destes eléctricos modernos procura manter-se fiel à tradição. Em quase todos os eléctricos do mundo, o sinal sonoro de aviso é uma campainha que os torna inconfundíveis. A interpretação francesa também inclui uma campainha, mas usar uma como a dos outros seria uma ofensa à excepção cultural, por isso é necessário garantir que a nova campainha seja um bom aviso e, simultaneamente, capaz de nos inundar com uma onda de bom-gosto. Em vez da campainha usam uma gravação de um sino, certamente percutido com delicadeza no ponto certo por um pequeno martelinho de pau-preto – Plim! É refinado. É chique. Plim! Não assusta as pessoas nem os pombos. Plim! É fino. Plim! Empresta uma certa serenidade aos ruídos da cidade. Plim! Plim! Plim! Não transmite qualquer urgência. Plim! Só serenidade. Plim! Ninguém o ouve. Se ouve, não lhe liga. Póóó! Pelo sim, pelo não, também instalaram uma buzina de ar.

 

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

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