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06 2009

Escrevendo a História

Cada povo escreve a História que mais lhe agrada. É o seu direito. Os angolanos tentam escrever a sua, embora ainda se notem traços hesitantes nesta aventura de criar uma identidade nacional nova.

Uma hesitação famosa é a figura do Rei Katyavala, muito importante por razões que ninguém sabe explicar bem porquê, que viveu não se sabe quando nem onde. Dizem que é fundamental estudar mais esta figura para que as pessoas saibam porque é tão famoso. Um molho de bróculos, portanto.

Outro tropeção encontra-se em Massangano, povoação que cresceu numa das muitas curvas do Kwanza. Nos seus tempos áureos, chegou até a ter um tribunal. Sede de concelho até que perdeu a sua importância estratégica e foi abandonada em prol do Dondo.

As ruínas do edifício da Câmara Municipal, do Forte e do Tribunal tinham sido declarados monumentos nacionais ainda no tempo colonial, já que mais não fosse porque os portugueses também queriam escrever a História de Angola.

Recentemente, para completar a informação de algumas lápides, instalaram-se uns letreiros de chapa negra, com letras brancas pintadas à mão. Nalguns casos fica um pouco ridículo ter a lápide e o letreiro tosco lado a lado, mas todos os monumentos estão identificados.

Há, no entanto, algumas incongruências. A lápide do forte diz que foi construído em 1604, mas o letreiro afirma que é do séc. XVI. Curiosamente, ambos estão correctos. Houve uma fortificação anterior, provavelmente construída com muros de terra e estacas de madeira, que se julga datar de 1583.

A Igreja de Nossa Senhora da Vitória, julgo eu, foi construída para comemorar a vitória sobre os holandeses, em meados do séc. XVII. Um dos aliados mais famosos dos portugueses de então foi a Rainha Ginga. A igreja é quase igual à da Muxima, embora esteja muito mais degradada. Toda a gente vai e conhece a Muxima. Massangano está perdida no meio do nada. A igreja também tem direito a placa identificativa onde, uma vez mais, nos dizem que foi construída no séc. XVI. A confiança na vitória era tanta, que se jogou por antecipação. Comemorou-se a derrota dos holandeses antes mesmo destes terem chegado.

No adro da igreja está um túmulo solitário e anónimo. Poderia ser confundido com um cruzeiro, mas a placa nova indica claramente tratar-se do túmulo de Paulo Dias de Novais, que veio a Angola à procura das minas de prata de Cambambe e acabou por fundar Luanda, tendo morrido aqui, em 1589.

paulodiasnovaes

Tal como na Muxima, em 1960 ergueu-se uma cruz de betão comemorativa do quarto centenário do fundador de Luanda, homenageando Paulo Dias de Novais, neto de Bartolomeu Dias e nascido, provavelmente, em 1510. A da Muxima fica encostada à muralha do forte, mas a de Massangano foi construída num miradouro perto da igreja.

Este miradouro fica no ponto mais alto da povoação, num cabeço sobranceiro ao Kwanza e à foz do Lucala, de onde se pode avistar uma paisagem magnífica. É um pequeno espaço empedrado com cerca de cinquenta metros quadrados, rodeado por um muro baixo onde nos podemos sentar. Tem uma dúzia de degraus largos a ligá-lo ao caminho para o centro da povoação. Um miradouro típico, no fundo. A única coisa que o distingue é o monumento ao centro.

Mas é uma construção de pedra e, como tal, merecia um letreiro de chapa explicativo. Ficamos a saber que se trata de uma construção do séc. XVI, tal como as outras. Tem um aspecto bem mais recente, mas confiamos na placa.

Na falta de justificação para aquela construção em tão remota época, escolheu-se o mais simples: Praça de Escravos!

massangano-praca de escravos
Miradouro da Praça de Escravos

É certo que se trocaram escravos em Massangano. Até à abolição da escravatura, era um negócio como qualquer outro e nele participavam os brancos, que compravam e os negros, que forneciam outros negros menos afortunados. Duvido muito é que fosse neste local que se fizesse o negócio. Afinal de contas, era pelo rio que se transportava tudo. Que sentido faria montar o mercado no local mais alto? Não se negociaria melhor junto ao ancoradouro, ou em frente à Câmara Municipal?

Bom, esqueçamos este pormenor e entremos no jogo. Quer tenha existido uma praça de escravos ou não, muitos foram aqui comprados. No séc. XVII (o XVI, segundo as placas de Massangano), a principal aliada militar e comercial dos portugueses foi a Rainha Ginga. Se, no plano militar, combateu os holandeses, no plano comercial, vendeu escravos a ambos. Mas isso não se costuma dizer em voz alta, porque toda a gente sabe que escravidão é só de branco contra negro.

É preciso ignorar estes pecadilhos e louvar o facto de estarem a tentar preservar a História. Ao contrário de Luanda, onde se deita tudo abaixo.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “Escrevendo a História”

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  1. Afonso,
    desse jeito a reputação da Rainha Ginga ficará arruinada!
    Ainda bem que você não disse nada sobre o fato de ser ela própria dona de escravos. Nem que os mandava ficar de gatinhas para lhe servirem de cadeira. Ainda bem.

  2. Bom dia
    Li com agrado a vossa página e gostaria de saber como posso saber mais sobre o Rei Katyavala ,assim como ver inmagens do mesmo.Se por algum motivo não for possível peço que me indique aonde posso fazer essa pesquisa aqiu em Luanda.
    Muito obrigado pela vossa ajuda
    Cumprimentos

    Carlos Nascimento

  3. Diz-se que o Rei Katyavala fundou o reino Bailundo, em data desconhecida. Não se conhecem datas aproximadas do seu reinado ou vida. É venerado pelo regime angolano como herói nacional, mas nada se sabe acerca dele. É personagem importante devido a feitos desconhecidos, e o próprio Ministério da Cultura prometeu empenhar-se na recolha de dados que comprovem a sua importância na História de Angola, embora possa ser personagem fictícia.

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