Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

18  09 2009

A identidade perdida

As circunstâncias em que meio milhão de portugueses deixou África não permitiram uma transição suave entre as duas vidas. De um dia para o outro, amigos, casas, empregos e paisagens mudaram completamente. A única vida que conheciam eclipsou-se sem deixar rasto no fim de uma ponte aérea. Muitos separam a vida em duas épocas distintas, o antes e o depois. Grande parte não teve remédio senão adaptar-se às novas circunstâncias, outros nunca o conseguiram.

Hoje em dia, apesar de já não se falar tanto nisso, os retornados ainda procuram saber quem são, porque a sua identidade e referências ficaram lá em África, enterradas num passado que os outros querem esquecer.

Graças ao Aerograma, tenho-me apercebido de que as saudades não esmorecem. Uma parte significativa das novas visitas que recebe são de pessoas que procuram referências do passado ou que tentam reavivar memórias. Muitos procuram-se a si mesmos, provavelmente porque ainda não compreendem bem a cambalhota que a vida deu há mais de trinta anos.

Há ainda os descendentes desta geração que viu a sua terra tornar-se estrangeira e que se sentem estrangeiros na terra que agora dizem ser sua. Estes últimos buscam confirmação das histórias contadas pelos pais, talvez para tentar perceber tudo aquilo que não faz sentido.

Por muito que me esforce, sou incapaz de imaginar o que será perder a identidade desta forma abrupta. Mas já me dou por feliz se a minha visão de Angola puder ajudar alguém.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

5 respostas a “A identidade perdida”

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  1. Não sendo um retornado mas talvez um refugiado – uma vez que nasci e vivi toda a minha infância e juventude em Angola – junto-me também àqueles que procuram no Aerograma um passado ou uma memória adruptamente desterrada. Saudosismos saloios à parte, procuro aqui uma espécie de “regresso ao futuro” mais pela forma como o remetente trás até mim algumas dessas memórias, longe do olhar pessoalmente comprometido, jornalisticamente frio ou politicamente calculista com que habitualmmente as coisas daí são tratadas e trazidas ate nós aqui no “resto do mundo”. Gosto da forma e da visão com que o Afonso transporta fracções ou fragmentos dessa nova-velha Angola até à minha distante angolanidade (que entretanto já se transformou em universalidade).
    Se o Afonso fosse um retornado, tenho quase a certeza que não comungaria da visão que muitos retornados tinham e têm ainda de Angola, com preconceitos e complexos de superioridade em relação ao povo africano e à sua cultura. A esses, nós (ditos brancos de segunda em Portugal) costumávamos apelidar de colonos aí em Angola. Pelo contrário, parece-me que o Afonso percebe o contexto em que viveu e vive esse povo e essa Angola submetida a tantos anos de guerra e que se vai querendo levantar, com todos os seus encantos e desencantos, defeitos e virtudes, entre outros paradoxos.
    É a forma saudável e descomprometida de ser e estar na minha terra, sendo estrangeiro, que me faz acompanhar com alguma regularidade o seu Aerograma. Continue assim apaixonado ou desanimado, zangado ou divertido, mas continue a trazer a velha ou a nova Angola de acordo com a sua própria vivência, e eu cá estarei agradecendo a atenção.

  2. …e há ainda os descendentes dessa geração, que nasceram e sempre viveram em Portugal, já lá vão 25, 26, ou 30 anos, e que até hoje lhes é negada uma identidade.

    …não têm direito a um BI que lhes dê acesso a um trabalho condigno, por muito que consigam estudar

    …não têm identidade…nem no País que os viu nascer, nem no País dos seus ascendentes…

  3. Caro Afonso,

    Agora já não tenho a mais pequena dúvida em como o Afonso tem uma boa visão desta questão. Eu não sou retornado, nem sequer refugiado, como muita gente que veio de Angola se considera — e muito correctamente, porque quem nasceu lá não retornou, fugiu, ou foi obrigado a isso… — mas lembro-me perfeitamente desse período conturbado e senti isso muito de perto. E depois de começar a viajar para Angola, descobrindo essa terra imensa, fui ganhando a compreensão da sua dimensão, dos seus valores, do seu encanto. E isso fez-me perceber os sentimentos que quem partiu e não voltou mais. Apesar de todos os aspecto negativos, que também são muitos e duros, Angola é uma terra inesquecível.

    Abraço,

    Alexandre Correia

  4. A descolonização “doa a quem doer” ainda faz e fará muitos estragos… a todas as partes.

  5. Já fui retornado de Angola, já fui emigrante, já fui “cooperante”, na ex-colónia da Guiné, mas de todas as experiências a que mais novidades me deu, e que mais enriqueceu o meu entendimento daquilo que é ser português, foi ter sido retornado, e como já tinha visto retornados 13 anos antes de mim, que foram os belgas que fugiram do Congo em 1960, faço comparações.

    Não há dúvidas, para o bem e para o mal, deixamos sempre a porta mal fechada!

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