Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

08 2008

Grande Hotel Bakkini, Gafsa

Quando chegámos ao Hotel Turismo de Ganda, já depois do Sol posto, tive uma sensação de deja vu muito estranha. Não era exactamente reviver uma situação, mas sim preencher uma memória que tinha ficado incompleta.

Há uns anos fui conhecer a Tunísia e tive o prazer de almoçar no restaurante do maior hotel de Gafsa, o Grande Hotel Bakkini. Foi uma experiência memorável, comparar os padrões europeus e africanos em termos de hotelaria. Desde as toalhas de plástico muito gordurosas até aos talheres que se vão reciclando a cada prato, passando por casas de banho típicas de países árabes, isto é, com uma mangueira do lado direito a fazer a vez de papel, fomos brindados com tudo. Ainda me lembro que o almoço começou com uma sopa de tomate e havia um prato de esparguete lá pelo meio. Mas os percursos turísticos organizados fazem-nos sempre pernoitar em hotéis com condições semelhantes às do mundo ocidental pelo que, apesar de já ter dormido algumas noites em hotéis de África, nunca dormi num hotel africano. Alguma vez havia de ser a primeira.


Parece desocupado

Dar com o hotel foi bem mais fácil do que o esperado. Ganda não é uma terra muito grande e o hotel é um marco importante, conhecido por todos. Depois de perguntar duas vezes, a recepção lá apareceu. Estava fechada e entaipada. Uns momentos depois ouviu-se um gerador a arrancar e iluminou-se um letreiro na esquina.


Estenografia


É aqui!

Demos a volta à esquina e entrámos no bar do hotel. Fez-me lembrar uma taberna de província em mau estado de conservação e com cadeiras de plástico. A um canto, a omnipresente televisão.


Paredes com décadas de gordura

Não há electricidade em Ganda. No bar do Hotel Turismo, onde há gerador, junta-se uma multidão para ver a novela da noite. As pessoas vão entrando e acotovelando-se para ver a versão brasileira de um folhetim venezuelano… se os diálogos já eram maus e a dobragem atroz, o conjunto final era de fugir.

Estou à porta, a ver as ruas da cidade. À entrada sou o tema de conversa. Chinês? Pula? Tuga? Os mais informados vão esclarecendo a dúvida. É tuga! Mas rapidamente o enredo da novela acaba com estas preocupações e todos fitam a televisão. Ninguém fala ou comenta. Apenas se ouve o esporádico clarear de garganta ou uma risada sentida nos momentos mais ligeiros…

Eles são todos muito novos. Na verdade, todos bastante mais novos que eu. Elas são também novas, mas há uma ou outra com mais de vinte anos. Ao contrário deles, elas arranjaram-se para este momento especial. Um lenço bonito na cabeça, um casaco a condizer com os calções bem curtos ou apenas um par de brincos mais vistosos. Como sempre, toda a gente anda de chinelos…

Quem tem telefone aproveita para o carregar na ficha tripla da televisão. É preciso aproveitar as alturas em que se tem acesso ao gerador.

No preçário vem a menção a H2O MIN. O empregado não perde tempo a explicar que se trata de água mineral. Bom sinal. A educação já chegou aqui!


A bela da ardósia

A empregada do hotel foi-nos mostrar os quartos enquanto tomava nota da ementa para o jantar. Pedia desculpa, mas ainda só tinha tido tempo para arranjar um dos quartos. Os outros estariam prontos a seguir ao jantar.


A caminho do quarto

O hotel desenvolve-se no pátio interior de uma casa do tempo do colono. Já na altura devia ser hotel. As divisões originais do resto do complexo foram sofrendo algumas alterações ao longo dos anos, sendo preciso percorrer um verdadeiro labirinto de corredores, salas, pequenos pátios, cozinhas e despensas até atingir o pátio principal, com os quartos, as casas de banho e as oficinas. Um possível atalho é entrar directamente para o pátio, contornando tanto a recepção como o bar.


De noite


De dia

Como quem parte e reparte e não fica com a melhor parte ou é burro ou não tem a arte, fiquei com a suite. Os outros quartos tinham a casa de banho exterior.

Fui buscar a mala e apreciar as acomodações.


Uma televisão, uma mesinha de cabeceira, uma cama de casal

Na gaveta da mesinha está um ferro de engomar, o manual de instruções de um gerador/máquina de soldar e uma embalagem de preservativos subsidiados pelo estado. Algumas gotas de cera indicam que o gerador que canta lá fora é a excepção e não a norma.


Os hotéis americanos têm uma Bíblia na gaveta

Um colchão de molas assentava sobre uma cama de ferro vermelha vinda directamente da China. As bolas douradas da cabeceira eram de plástico. Ou melhor, a que ainda se mantinha no sítio era de plástico. A roupa de cama era constituída por duas colchas muito finas. A fronha de uma delas serve de naperon para a mesinha. Para o clima angolano duas colchas são mais do que suficientes. No entanto estava à espera de algo um pouco mais digno da palavra hotel.

Espreitei a casa de banho. Lavatório, sanita, duche. Menos mal. Ladrilhos por assentar e ferramentas em todos os cantos. Um bónus. Montes de entulho e lixo. Normal. Nada de água nas torneiras, aliás, as torneiras até estão todas dentro do lavatório. Não faz mal, uso a casa de banho exterior, mesmo à saída do quarto.


Temos direito a duche


O indispensável


Para quem se quiser entreter

Esta estava mais arrumada. Tinha uma banheira entupida, um bidé entupido e uma sanita a funcionar. O lavatório estava de férias. A loiça sanitária que resiste deve ter custado uma fortuna lá nos meados do séc. XX. O facto de ainda agora estar a uso só diz bem dela.


Loiça sanitária de luxo

Entre a banheira e o bidé estavam armazenadas as águas correntes quentes, frias e mornas, consoante a hora do dia. Não eram bem correntes porque estavam em dois baldes de 50 litros e um alguidar. Também não seriam bem águas, a julgar pela cor.


Água quente no balde vermelho. Água fria no balde azul.

Pendurada num prego estava uma rede para lavar as costas. Depois de olhar para a água, passou-me logo a vontade de lavar a cara, quanto mais as costas.

Disseram-nos que não era muito agradável ter uma toalha a que toda a gente se limpa… por isso não há toalhas para ninguém.

Havia, no entanto, acabadinho de abrir e pronto a estrear, um sabonete reluzente assente no parapeito da janela. Era Lux.


9 em cada 10 estrelas de cinema usam Lux.

O consolo chegou ao jantar. Um belo bife de panela acompanhado por funge de milho. Tenho de perguntar à senhora como se faz aquela delícia. Optei por não a ver cozinhar porque a cozinha se enquadrava nos padrões de normalidade de Ganda e olhos que não vêem…


A casa de banho do bar

O gerador a trabalhar ao fundo do quintal sempre vai embalando, mesmo quando se engasga e é preciso fazê-lo arrancar de novo. As luzes vão tremeluzindo e mudando de cor ao longo da noite, mas é normal. O longo dia já se faz sentir nas pálpebras e é chegada a hora de deitar. Volto ao quarto.


Lago dos jacarés?

A coisa que mais me apetece fazer é despir, mas depois olho para os quase-lençóis e penso duas vezes. Sento-me na cama e descalço as botas. Começo a tirar as meias e volto a olhar para a cama. Mudo de ideias. Enfio as calças para dentro das meias, troco a camisa por uma t-shirt e deslizo meio a medo para entre as duas colchas.

Olho para as frestas da porta. Por ali passava um cabrito. Não é que haja bichos, mas pelo sim, pelo não. Besunto-me de repelente de mosquitos e apago a lanterna. Até amanhã.


Um dos hóspedes

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

10 respostas a “Grande Hotel Bakkini, Gafsa”

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  1. Gostei particularmente da arsósia com a frase “Só há kilap a mais de 100 anos acompanhado pelo seu pai!”. Caro amigo, nas cidades pequenas, segundo me dizem, só de saco-cama próprio e toalha no saco de bagagem, com toalhetes de limpeza! Mas mesmo assim, isto tem um “je-ne-sais-quois”…
    Parabéns pelo blog, que encontrei via blog do meu primo Ricardo, o Muamba-Banana-Cola…

  2. Ainda bem que ficaste com a suite… que luxo!
    Nunca vi instalações sanitárias desse calibre…
    Sem dúvida que uma imagem vale mais que mil palavras… palavras para quê.

  3. Acho que as fotos valem por tudo, são as saudades daquelas pequenas coisas. Um abraço

  4. Quem, como tu, tem vistas largas e sonha rasgar horizontes com promessas de futuro, ter de confinar o olhar a becos e buracos perdidos, onde até os geradores soluçam, abatidos pelo peso do passado e no desespero de um futuro minado, só pode ser ironia do destino!
    Lembro Pepetela quando dizia, num dos seus livros, ter sonhado ser possível construir um país em África, mas ter-se apenas construído mais um país africano.
    Coragem, meu filho, e continua, como fazes tão bem, a mostra-nos os teus caminhos de sol e de sombra.
    Um terno abraço da tua mãe e irmã.

  5. Rapaz,

    Até eu fico impressionado, e não é fácil ficar.

    Depois do que vi uma coisa te digo, ainda bem que não viste a cozinha, de certeza que a comida não te teria sabido tão bem.

    Abraço.

  6. Afonso

    Mais uma vez muito obrigado por tudo .

    Adorei as fotos.

    Um Beijão da amiga Gandense

  7. Adorei a narração, as fotos, os comentários … já que vivi alguns anos nessa bela cidade, do tempo passado.

    Beijoka

  8. Tempos que já lá vão!
    Tempos … de recordação e saudade de quando eu tinha 16 anos e trabalhei no bar do HOTEL TURISMO, com o Sr.José Silva em que a modéstia desse hotel contracenava com a limpeza e brio das pessoas que estavam a frente dos destinos do hotel.
    Hoje é com grande tristeza vejo estas fotos.
    Um obrigado amigo por todo este trabalho.
    Um bem haja.
    se algum me reconhecer e me quiser contactar meu email é o seguinte: DALMOCERQUEIRA@MSN.COM
    UM FORTE ABRAÇO PARA O AFONSO E PARA TODOS OS GANDENSES

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