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22  03 2012

Os miliares, os quilométricos e os descartáveis

Já matutava no assunto há alguns meses, mas ainda não tinha arranjado uma linha condutora para a ideia. Um artigo publicado no Bic Laranja foi o catalisador.

Uma tradição que os romanos exportaram para todo o mundo, ou pelo menos até onde chegaram as suas estradas, foi a da colocação de marcos miliares ao longo das vias que abriam ou renovavam. Talvez não tenham sido os primeiros a ter essa ideia, mas foram com certeza quem mais a difundiu.

O marco miliar, uma grande rocha toscamente talhada com a forma de uma coluna, era cravado na berma da estrada a cada mil passos romanos, ou cerca de 1’800 metros. É preciso não esquecer que um passo romano só termina quando a mesma perna inicia um novo movimento. O marco identificava a estrada, com a direcção das várias povoações que ligava e, acima de tudo, identificava o nome do imperador que a tinha mandado construir ou reparar. Os marcos auxiliavam os viajantes, mas também gravavam em pedra os nomes que fazem a nossa História. Acima de tudo, mostravam que autoridade se estendia até áquele recanto do Império. Gostaria de poder ilustrar este artigo com uma fotografia de um marco romano da estrada de Braga, sei que a tenho, mas não me recordo onde a guardei.

Durante a Idade Média, esse período conturbado em que a organização romana sucumbiu e a História se torna confusa, as velhas vias romanas foram perdendo importância. O movimento das legiões através do Império cessou e com a falta de uma capital que importava luxos de toda a Europa e Mediterrâneo, as trocas comerciais restringiram-se cada vez mais a circuitos regionais e locais. Os marcos perderam o interesse. Não mais havia que mostrar o poder imperial nem tão pouco indicar o destino da estrada percorrida apenas pelos locais.

Os marcos voltaram a ganhar importância com o ressurgimento das linhas de comunicação a longa distância. O primeiro serviço regular de Malaposta em Portugal foi estabelecido no final do séc. XVIII, durante o reinado de D. Maria I, ligando Lisboa a Coimbra com a nova Estrada Real, em macadame. A cada légua desta estrada foram colocados marcos monumentais, obras de escultura ao gosto da época, mas que deixam transparecer a ideia deixada pelos romanos, identificar a estrada, mas sobretudo o autor da obra. O serviço de diligências e malaposta funcionou intermitentemente nas décadas seguintes, até o comboio o destronar definitivamente. Também esta estrada foi sendo esquecida à medida que outras vias eram abertas. Curiosamente, alguns destes marcos eram coroados por um relógio de Sol, que está sempre certo e não gasta pilhas.

Marco da IV légua
Marco da IV Légua, Alverca

 

No séc. XX, o automóvel implicou uma grande mudança nos hábitos enraizados. Construíram-se estradas como nunca antes visto, mas os marcos continuaram a ser implantados nas bermas. Já não ostentavam o nome do soberano, mas indicavam a existência de um governo central, mostravam o alcance do tentáculo da administração. Como sempre, eram feitos de pedra. A pedra, que serve de memória às civilizações até nas bermas das estradas que se rasgam.

Marco quilométrico
Marco do séc. XX

Muitas das velhas estradas nacionais que foram reconstruídas administrativamente, isto é, reclassificadas, viram os seus velhos marcos de pedra gravada ser pintados de branco e as novas inscrições pintadas de preto por cima, à espera que os elementos as façam desaparecer. Na grande maioria dos casos, a informação constante nos lados perpendiculares à estrada migrou para a face paralela à berma, resultando num estranho contorcionismo do marco. Claramente, não há interesse em que durem e a palavra de ordem é gastar dinheiro parecendo que se poupa. Não se fazem novos marcos de pedra nem se grava as novas inscrições porque sai caro, mas pintam-se milhares de marcos regularmente com indicações que diferem das antigas quase só pela posição que ocupam.

Mas em termos de estradas, à Idade da Pedra não se seguiu a do Bronze, como aconteceu na História Humana, veio sim a do aço galvanizado, alumínio lacado e plástico colorido, mais conhecida como a Idade das Auto-estradas. Os marcos quilométricos ainda existem, por serem auxiliares indispensáveis para avaliar o progresso das viagens em que só o destino importa. Deixaram de ser de pedra, que é cara e dura mais que a nova estrada. Não se querem perpétuos para poderem ser esquecidos e reciclados sem esforço. Um pequeno rectângulo de aço pintado aparafusado ao rail de protecção serve perfeitamente. É o ideal para quando for necessário mudar o nome à estrada e mostrar obra feita.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

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