Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

27  02 2009

Parede branca

Lentamente, o avião foi subindo. O ponteiro do altímetro girava devagar, como o ponteiro dos minutos do relógio ao lado.

As nuvens, que escondiam o azul do céu, foram-se aproximando como uma prensa alva e fofa.

Momentos antes de mergulhar nelas, temos a sensação de nos encolhermos. A parede branca, de aspecto tão frágil quando vista de longe, parece-nos tornar-se algo impenetrável, sólido e ameaçador.

Mas as hélices enrolam-se à volta daquele algodão que são as nuvens. Nenhum baque ou solavanco denuncia a entrada. O choque anunciado perde-se no zumbido perpétuo dos motores e do ruído branco que sai dos auscultadores e nos afoga os ouvidos.

Olhamos para baixo e o chão vai surgindo a espaços cada vez mais pequenos, nos buracos que ainda salpicam aquele muro caiado que nos envolve.

Damos por nós a contemplar uma parede branca, tão brilhante que nos cega. Queremos fechar os olhos porque a luz é demasiado forte e nem os óculos escuros a conseguem filtrar. Mas é preciso fixar o horizonte artificial…

Todos os sentidos são subjugados por esta alvura. Os olhos só funcionam quando focam as mãos ou os instrumentos, que nos dizem que o ouvido interno está a ser enganado. Não seguimos numa linha recta, mas julgamos que sim. Calor seca-nos a boca e o nariz. Deixamos de conseguir distinguir os cheiros. O tacto resume-se aos comandos, que estão húmidos do suor que nos escorre das mãos.

Tentamos corrigir a atitude do avião só pelos instrumentos. O instinto diz-nos para procurar um ponto de referência no horizonte, mas ele desapareceu. Lá fora só há branco.

A ausência de estímulos torna o ruído das hélices, habitualmente uma companhia discreta, num troar ensurdecedor. Na falta de um sentido, ou restantes apuram-se…

À medida que vamos subindo, o branco torna-se cada vez mais brilhante. Desejamos voar numa caixa fechada. Escura. Fria. Silenciosa.

Subitamente, a luz muda. Acima de nós surgem pedaços de azul. O avião começa a dar cabeçadas no topo das nuvens e a luz que nos cegava dá lugar ao conforto do azul clarinho que costuma pintar os céus limpos.

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A parede branca a invadir o céu

À nossa frente, por dezenas de milhas, estende-se um mar branco e revolto. Sem pontos de referência, perdemos a noção da escala. Mesmo voando a quase 300 km/h, as nuvens que parecem estar na ponta do braço demoram vinte minutos a ser ultrapassadas. Voamos depressa, mas podíamos muito bem estar parados. Ocupamos o tempo com a verificação de consumos de combustível que, mesmo sem andar, se gasta regularmente.

O mundo desapareceu. Somos só nós, fechados numa caixa de alumínio aeronáutico e plexiglass. Acima de nós, só azul. Abaixo, só branco. Não há mais nada para além de nós…

Alucinamos e julgamos ouvir vozes distantes nos auscultadores. Dizem ser controladores invisíveis, que moram abaixo da parede branca. Não acreditamos, mas desejamos não ser os únicos e respondemos na mesma.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Parede branca”

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  1. Espectacular! Tambem quero!

  2. Impressionante. Desde a primeira palavra ate a ultima silaba eu me senti IFR `a frente do computador.
    Enquanto ainda um PP, me resta, de imediato, iniciar o simulador de voo e repetir a cena de forma virtual!
    Parabens pelas palavras.

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