Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

23  02 2009

George, o manicaca

Cresci num país pequenino, onde se consegue espreitar sempre uma casinha no monte seguinte. A única excepção é o Alentejo, onde as povoações se encontram a cerca de meio dia de viagem a pé umas das outras. Apesar de pequenino, é muito variado.

Angola, à sua maneira muito especial, é também muito variada. Subitamente passamos de ambientes de florestas densas para chanas cheias de capim ou zonas áridas. A transição poderá ser súbita, mas cada uma destas zonas estende-se até perder de vista. Desde que não estejamos na fronteira, a toda a nossa volta a paisagem é igual. E casas são raras, muito raras. Será talvez essa a grande mística de África, os horizontes intocados.

Cá, onde tudo é maior, as vilas e cidades ficam mais afastadas umas das outras. De carro contamos sempre com umas horas valentes para chegar à terra seguinte. E, como os condutores angolanos são cuidadosos, as viagens de carro são sempre arriscadas. Sair de Luanda com o intuito de conhecer mais um pouco do país obriga-nos sempre a percorrer as mesmas estradas congestionadas durante horas. Se não quisermos pernoitar no destino, à terceira viagem exploratória, mal chegamos, é hora de partir….

A única solução para se ir de um lado ao outro do país sem gastar dias na viagem é ir de avião. Os jactos ligam as principais cidades do país em poucas horas. De Luanda ao Huambo são cinquenta minutos de voo, outros tantos até ao Lubango e mais outros até Ondjiva, perto da fronteira com a Namíbia.

Por ter uma profissão nada monótona, tenho o prazer de poder viajar pelo país inteiro num pequeno avião e conhecer esta terra de uma maneira especial. Ao contrário dos jactos e dos aviões que fazem as carreiras entre as cidades, quase sempre voamos abaixo das nuvens, vendo os matos e os montes a correr lá em baixo. Recordo as aulas de geomorfologia quando vejo rios a meandrizar, já cheios de braços mortos e jacarés a dormitar.

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Meandros na planície

Como voamos bem mais devagar que os outros, as viagens são um pouco mais longas e pode-se conversar com quem já viveu esta terra antes de mim. Em circunstâncias normais, ligar-se-ia o piloto automático e o avião tratava de se manter no rumo até perto do destino. Acontece que o George, o piloto automático em gíria aeronáutica, está de baixa. Queimou um fusível e só quando chegar um novo é que regressa ao trabalho.

Para encurtar um pouco a viagem e com a desculpa de que assim o piloto se cansa menos, comecei a aproveitar as lições de voo. Nem todos podem dizer que têm um piloto de guerra como instrutor particular.

«Aquelas nuvens são sinal de turbulência. Ali há correntes descendentes: repara no fumo das fogueiras e na posição do monte. Mantém as asas direitas ao atravessar a camada. Acerta o altímetro para 1020 mbar. Bússola para 2-1-0. Acompanha os comandos na aproximação.»

Até agora agora ainda não ouvi um «AAAAAAHHHHH, VAMOS MORRER!!!» Acho que é bom sinal.

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Acrobacias (feitas pelo piloto, que eu só tirei a fotografia)

É certo que só tenho voado nas partes chatas. Altitude e rumo constantes e tal. No fundo, faço o trabalho do George, esse grevista.

O nosso colega brasileiro prefere ir lá atrás a ler um livro ou a ouvir música. Tem mais horas de avião que eu de vida e já não se emociona com isto. Eu bem brinco com ele e pergunto se se importa de parar rezar quando estou aos comandos. É que as contas do rosário a bater umas nas outras incomodam.

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O grande Kwanza

Quando aterramos ele conta as histórias dos pilotos manicaca com que já voou. E depois explica que manicaca é alcunha que se dá aos pilotos novatos, acabadinhos de sair do curso e desejosos de fazer horas de voo para ingressar numa companhia aérea mais importante.

Concluo que sou um George manicaca… qualquer dia volto à escola e passo só a manicaca.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “George, o manicaca”

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  1. Estou a ver que já faltou mais para seres um manicaca, enquanto isso, vais fazendo as vezes do George grevista(para começar não é nada mau).

  2. Eh pá! Fiquei enjoada de ler este artigo…Para a próxima é melhor não comer pequeno-almoço antes de vir “voar”.

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