Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

23  07 2008

Noite

As noites às vezes são complicadas. A vontade que temos de dormir não está em sintonia com alguns espíritos mais foliões que resolvem gritar serenatas à minha janela, ou partir garrafas de cerveja no pátio em frente a altas horas da madrugada. Temos tido a sensação de que as noites são muito curtas. Acordamos com o tal ar de zombie e com a cara cheia de vincos.

Depois de estudarmos o problema, descobrimos que a questão não assenta propriamente na duração da noite. O amanhecer é que chega estupidamente cedo, a uma hora que não lembra a ninguém.

Tem sido de tal forma, que já houve um dia em que sonhei que dormia…

Adiante.

Esta noite até estava a começar bem. Deitei-me quando ainda não tinha começado o dia seguinte e esperavam-me umas sete horas de luta com a almofada. Tudo corria lindamente. Uma hora depois os seguranças do prédio resolvem abrir, à bordoada e pontapé, uma porta metálica perra… Estava difícil mexê-la, pelo que posso concluir que também ela dormia profundamente.

E isto leva-me a falar da noite luandense, que foi uma experiência nova, descoberta quase por acaso.

No Sábado da última Lua Cheia resolvi ir ver um pôr-do-Sol lá para os lados do Mussulo. Já estou há tanto tempo em Angola e ainda não tinha tido a oportunidade de apreciar um dos famosos entardeceres africanos.

Como é a época dos cacimbos, não há um verdadeiro pôr-do-Sol. Há uma bola amarela que vai descendo e ficando cada vez mais laranja. Quando está quase a chegar ao horizonte, desaparece na neblina.

É um verdadeiro anti-clímax…


30 segundos de intervalo. Depois desapareceu sem tocar no horizonte

Depois foi o regresso a casa, a horas menos indicadas para andar na rua (segundo me disseram). Se na ida não demorei mais de 45 minutos a chegar ao Mussulo, o caminho de volta tomou-me mais de duas horas. Entre candongueiros avariados, obras intermináveis e condução agressiva, os engarrafamentos sucediam-se.

Por causa de um qualquer acidente na Estrada da Corimba, que passa junto ao mar, tive de vir pelo meio do Bairro Rocha Pinto. Já de dia não é recomendável e de noite ganha um aspecto tenebroso. Não faço ideia se é mais perigoso ou não, mas o certo é que o escuro esconde os perigos e realça os receios. Nem tudo foi mau, porque pude assistir à abertura dos mercados nocturnos.

À noite os mercados também funcionam. São abastecidos pelas vendedoras que não despacharam a mercadoria diurna e ainda não têm lucro suficiente para regressar, por aqueles que vendem à porta de casa e pelos que cozinham para vendedores, clientes e candongueiros. A confusão é semelhante à diurna, mas com um aspecto fantasmagórico. Para vencer a escuridão densa de Luanda, todas as bancas têm uma garrafa de cerveja ou lata velha com parafina a arder. Ver as bermas a bruxulear durante quilómetros é algo de indescritível. Atrás de cada chama surge uma cara distorcida pela luz laranja do fogo e o negro profundo da noite. Dois olhos esbugalhados surgem sobre um nariz brilhante e um sorriso aberto que grita o pregão. Do breu surge uma mão sem rosto, que se estende sobre as brasas de um grelhador feito com uma jante de automóvel, vira o cabrité e volta a desaparecer.

Uma maior concentração de pequenas chamas ondulantes indica zonas de trânsito mais lento ou cruzamentos importantes. Para quem vem ao volante significa mais uns minutos a passo de caracol. Os candongueiros continuam a entrar e a sair da estrada sem aviso ou cuidado e a ânsia de andar mais três metros que seja fá-los cortar a passagem a tudo e todos.


Um embondeiro ao pôr-do-Sol é um excelente conversador

Contrastando com o centro de Luanda, onde a noite é sossegada, os arrabaldes vibram com tanta azáfama. Quase se diria que os mercados nocturnos são tão vivos como os diurnos. Não são tão coloridos porque o lixo desaparece nas sombras. Há vultos cansados que vão aparecendo e desaparecendo na escuridão, iluminados pela dança desencontrada dos faróis e das lamparinas. São os vendedores que ganham o dia no meio das filas de trânsito, que se juntam aos carregadores no regresso a casa, para descansar e retomarem na madrugada seguinte.

Antes de me deitar ainda fui à janela ver quem me chamava. E lá estava ela!


Linda, como sempre!

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Noite”

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  1. Parabéns, mais uma vez!
    As suas descrições sobre a vida, quer na cidade quer nos arredores, sobre os mercados e costumes luandenses ou ainda sobre as paisagens, deixam-me presa à leitura.
    Tem sensibilidade artistica e veia de(bom)escritor.

    Continuação de bom trabalho e de boa estadia.
    Maria

    P.f. diga ao Ricardo (meu sobrinho) e Paula que lhes envio
    bjis e que é complicado comentar no blog dele!

  2. Ainda não foi desta que viste um verdadeiro pôr do sol africano (haverá mais oportunidades), mas a lua está realmente muito bonita e faz-me lembrar alguém….

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