Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

21  09 2008

Zoom ao lixo

Quando se chega a um local desconhecido, a primeira coisa que fazemos é apreciar o todo e depois partir para as várias partes. Tal como nas fotografias, começamos pelos panoramas e vistas gerais e só depois nos vamos aproximando dos vários pormenores. Fotografam-se as paisagens e depois vamos escolhendo sujeitos bem mais próximos como árvores, pedras ou flores. As paisagens mostram muito, é certo, mas com tão pouco detalhe que não nos conseguimos inteirar das emoções que sentimos naquele sítio. A pouco e pouco vamos procurando enquadramentos cada vez mais apertados, focando a nossa atenção em determinados pormenores que passam despercebidos na vista geral. Passamos a dar atenção às pequenas coisas, áquelas que deixam marcas na memória.

Um local novo é uma enxurrada de estímulos para os sentidos. Há tantas coisas para ver, ouvir, sentir e cheirar, que não somos capazes de nos abstrair dessa onda de sensações que nos submerge. A pouco e pouco vamos conseguindo filtrar o ruído e começamos a ver o que é realmente importante. O ser humano identifica as coisas pelo desvio da média, isto é, tem uma imagem mental do que é o aspecto habitual de uma coisa e compara isso com o objecto. Se for algo totalmente novo, as diferenças óbvias vão-se sobrepôr às mais subtis. É normal ir para o estrangeiro e, nos primeiros tempos, ter a sensação de que as caras são todas iguais. Só depois de se criar a imagem média dos habitantes é que se começa a perceber as diferenças que há entre eles.

É um pouco como distinguir a voz de uma única pessoa no meio de uma multidão, ou de perceber dois estrangeiros a falar a sua língua natal. A princípio tudo não passa de uma cacofonia monumental, um ruído que enlouquece porque não somos capazes de compreender nada, embora saibamos que a mensagem está lá. Há um momento em que nos abstraímos das diferenças gritantes e nos focamos só nas mais ténues. Nesse instante conseguimos descortinar a verdade. Depois é fácil e não percebemos como alguém não é capaz de o fazer instantaneamente. É talvez um pouco como saber ler… o que eram desenhos engraçados passaram a ser palavras e ideias. Para sempre.


Panorama

Quando cheguei a Luanda só via lixo. Havia lixo por toda a parte. Todos os cantos e recantos estavam repletos de lixo das mais variadas formas, feitios e cheiros. Depois, quando me habituei a essa omnipresença do lixo, passei a ver varredores a trabalhar. Via-os trabalhar, mas o lixo continuava lá. Depois comecei a reparar no lixo que varriam e percebi que, o que parecia uma tarefa inglória, afinal começava a dar frutos. A partir de certa altura, deixei de ver varredores e passei a ver homens e mulheres com um trabalho digno, que não desistem de tornar Luanda uma cidade limpa. Mais tarde passei a reconhecer rostos, a reconhecer as zonas de trabalho de cada um. Saber quais são os mestres e os aprendizes já não tem mistério. É aqui que entra o grande plano.

Os varredores usam umas vassouras largas, com o cabo inclinado. Parecem umas escovas grandes. Varrem empurrando o lixo até fazer um pequeno monte que já custa a mexer. Nessa altura deixam esse monte e continuam mais à frente, até fazerem outro. Atrás deles anda outro cantoneiro, que vai apanhando os montes de pó e lixo. Os varredores mais novos no serviço fazem a vassoura percorrer um metro de cada vez, dando quase um passo atrás dela. A velocidade a que varrem diminui à medida que se cansam. Levantam muito pó. Tentam compensar varrendo um espaço maior a cada vez, mas depois têm de varrer o mesmo sítio, porque o pó ficou para trás e a vassoura tem de ser batida porque está cheia de lixo.


Grande plano

Os mestres varredores limpam a rua a uma velocidade frenética. A vassoura salta para trás e para diante, descrevendo um arco. Empurra o lixo dez centímetros e salta para trás, ressaltando duas vezes. Sempre que bate no chão, deixa cair o pó e fica limpa. Apenas os braços do varredor mexem, com gestos económicos, sem esforço. Agarra o cabo da vassoura como se estivesse apoiado num cajado inclinado, com uma mão sobre a outra, esticando e encolhendo os braços. Varrerá mais devagar no princípio do dia que o varredor inexperiente, mas mantém um ritmo tão regular e tranquilo que termina repousado e com mais serviço feito.


Força da terra

Foi assim que fui fazendo um zoom ao lixo de Luanda. O que me saturou os sentidos afinal tinha mais para ver. No meio de tanto estímulo numa cidade tão grande, acabei por apreciar uma coisa tão pequena como o movimento de uma vassoura numa qualquer rua de Luanda.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

3 respostas a “Zoom ao lixo”

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  1. Se eu pertencesse a um qualquer júri literário, atribuir-lhe-ia um prémio por este “aerograma”. A sério! Imaginação, sentido de observação, fluidez de expressão e até poesia são, para mim, evidentes no seu post. A aplicação de conhecimentos de fotografia a situações do dia-a-dia, resultou num bonito texto literário.
    Parabéns!
    Gostei muito de o ler.

    Maria

  2. Apesar de ser suspeita, como o são todas as mães que apreciam o trabalho dos filhos, faço minhas as palavras da Maria. Que bonito e bem escrito comentário!
    É gratificante encontrar pessoas que ainda conseguem ver poesia nas pequenas coisas desta vida, cada vez mais frenética e embotadora dos sentidos.

  3. O que é que eu posso acrescentar ao que a minha tia e a tua mãe já comentaram? Este texto vai para a galeria dos «Best of».

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