Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

20  10 2008

Regresso a Luanda

Antes do meu vôo, a porta de embarque é usada para o avião com destino a Belo Horizonte. É incrível como há gente descontraída. Já com as últimas chamadas e com os assistentes a pedir para se apressarem, continuam com um passo lento. O avião espera. Esperou, esperou e esperou. Às tantas desistiu de esperar e levantou vôo. Houve quem ficasse em terra. O melhor é que estavam na sala de embarque. Deviam estar a tentar saber qual era o atraso máximo que conseguiam ter. Um pouco como o outro maluco que quis saber qual era a distância mínima a que conseguia ter a cabeça de um combóio em movimento. Também correu mal.

As cadeiras da sala de espera da Aerogare Gago Coutinho partilham a mesma má ergonomia que as do 4 de Fevereiro. Para ser sincero, acho que são iguais em todos os aeroportos. Desconfortáveis e mal dimensionadas. A única diferença é que as de Lisboa têm uma cobertura verde que não escorrega. Muito melhor.

Pelas janelas aprecio os aviões na placa. Vejo aletas, accionadores, flaps, reactores, tubos aqui e fios acolá. Faço uma comparação com os aviões do antigamente, construídos de forma empírica. Vejo a sua evolução e ocorre-me que agora temos aviões próximo do ideal da época da Segunda Grande Guerra. Pelo menos em tamanho.

Chegou a nossa vez de embarcar. Vamos para o autocarro que nos leva até ao avião. Mais uma pesagem da bagagem de mão e lá vamos nós.

O 747-400 da South African desta vez não me pareceu tão descomunal. Fiquei com a sensação de que até é pequeno. Terá sido lavado a 90º?

A condensação nocturna vai escorrendo ao longo da fuselagem, juntando-se na barriga do avião. Faz um fio cristalino numa das aletas ventrais. Uma poça escura marca a sombra do avião. Será normal? Estará o avião em condições de voar? A vontade de ficar mais umas horas perto do meus lança estas dúvidas parvas…

Voltei a não ter lugar à janela. Escolhi um lugar na coxia, sobre a asa, com menos turbulência. Por enquanto não tenho vizinhos e ainda há a esperança de que fiquem três lugares só para mim.. Aproveito para espreitar pela janela e ver os passageiros do Airbus do lado serem espremidos por uma pequena abertura a que chamam porta. Fazem uma fila até ao autocarro e fico com a sensação de que está ali um tubo de pasta de dentes a ser espremido. Um tubo de pasta de dentes com asas. Se as companhias de aviação fossem unhas-de-fome, agarravam num abre-latas e aproveitavam os últimos restos de passageiros…

A partida está atrasada. Apareceram mais umas dezenas de passageiros. Um deles tinha lugar à janela na minha fila… se chegou ao aeroporto suficientemente cedo para ter um lugar à janela, porque razão chegou tarde ao avião?

Começam a passar os vídeos com as instruções de segurança. Antigamente ainda punham o pessoal de bordo a demonstrar como se fazia, mas parece que também as companhias de aviação desistiram de prestar atenção. A civilização caminha para o fim, está visto.

O ecrã que vai mostrando a posição do avião assinala algumas cidades importantes: Lisboa, Paris, Dar-es Salam e Fortaleza… Assim que descolamos, fazem uma ampliação ao sul de Portugal. Faro, Lisboa e Beja aparecem no mapa. As novas regras do acordo ortográfico já são seguidas pela South African Airways. Escrevem Beja com sotaque alentejano e tudo: BEIJA.

Os auscultadores que a TAAG empresta aos passageiros são um pouco manhosos, para não dizer maus. Colocam-se sobre as orelhas e não filtram ruído nenhum do exterior. E o Jumbo é barulhento como um raio. Temos de ter o volume no máximo e prestar muita atenção para perceber o que se está a tentar ouvir. Aproveitei o tempo de espera até ao embarque para comprar uns auscultadores com supressão de ruído. Que luxo! A nova definição de qualidade de vida é poder ouvir música clássica sem o BZZZZZ dos motores a distrair.

Estão a passar um filme de animação dobrado. Têm a banda sonora original e a dobrada em simultâneo. Espantosamente, percebem-se as duas. Basta prestar atenção a uma delas e a outra parece que desaparece…

Muitas horas depois, chegamos a Luanda. As pernas custam a dobrar. Custam a esticar. Custam a arrastar. O resto do corpo está na mesma. Os restantes passageiros estão nas mesmas condições. Tão moídos que ninguém bate palmas quando as rodas tocam no chão. Ainda bem, é um costume um bocado parolo. Mas temos boas notícias. Em que outra parte do mundo podemos chegar ao cair da noite e ser brindados com uns amenos 24º? Angola é especial.

Depois vem o controlo de passaportes. Filas lentas com muitos patamares de burocracia. Formulário aqui, boletim de vacinas e carimbadela acolá, passaporte e visto junto das perguntinhas “de onde vem, o que o traz cá e quando regressa?”. Na fila do lado estavam quatro coreanos. Três deles aparentavam ser coreanos normais. O quarto era a versão oriental do Keith Richards. Vestido de preto, com um lenço à Arafat, óculos de sol, cabelo comprido, pele curtida e enrugada e muitas tatuagens. Fazia sintonia com a preta metaleira, de coleira de pregos ao pescoço, lá no outro lado da sala.

A seguir vem a saga da bagagem. Pelo tempo que esperei pela minha mala de porão, sou capaz de adivinhar que só há uma pessoa a tratar das malas e que as tem de ir buscar uma por uma ao avião. A pé. Com sorte, ainda pára pelo caminho para dois dedos de conversa.

Os passageiros aglutinam-se em frente ao tapete das malas, como se assim a sua bagagem saísse mais depressa. Não há espaço para todos. Como tudo me parece extremamente demorado, prefiro não ficar a acotovelar-me com os outros. Vou criando imagens mentais das malas pelos relances que consigo ter dos objectos que se passeiam atrás das pernas das pessoas. Há dois ou três locais estratégicos em que se consegue ver um ou dois palmos de cada vez. A minha mala ainda não anda por lá.

A espera era tão longa que os passageiros, ao encontrarem a sua bagagem, se abraçavam aos embrulhos e malas, sorrindo de alívio. Eu devo ter feito o mesmo.

Quase duas horas depois de ter saído do avião, encaminhei-me para a Alfândega. O funcionário que verificava os recibos de bagagem pediu-me discretamente uma gasosa. Disse que não. Apareceu logo outro a perguntar o que levava na mala e que me ajudava a passar a Alfândega. «Levo roupa». «Mas eu facilito. Vem comigo que não há maka»! «Não, não vale a pena. Só levo roupa».

Afoito, lá segui pelo canal verde. Parei em frente ao fiscal, como quem pergunta se devo ir com a mala para o Raio-X ou se sigo logo para a porta. Está ocupado a mandar outro passageiro para o controlo e manda-me seguir.

Uns minutos depois chego a casa. Há um ratinho morto nas escadas. Dizem-me que esse foi o segundo que mataram nesta tarde. Dois ratinhos mínimos, ainda sem noção do que é ser rato, mais pequenos que um polegar. Estamos bonitos, estamos.

O R. e a P. saem para ir comprar um frango assado. Eu fico a desfazer as malas. Vejo uma sombra mexer-se pelo canto do olho. Queres ver…?

Era mesmo. Persigo um polegar peludo pela casa. Tem um encontro imediato com a biqueira do sapato e depois é atirado pela varanda. Estou a ver que Luanda continua como a deixei.


Ratinho amassado

Como cúmulo de normalidade, não temos electricidade!

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

5 respostas a “Regresso a Luanda”

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  1. “se chegou ao aeroporto suficientemente cedo para ter um lugar à janela, porque razão chegou tarde ao avião?” – já ouviste falar em Check-IN online? escolhes o lugar um dia antes se quiseres! isso sim, é luxo!

  2. Nada de novo… os 24º mantém-se, existe sempre alguém que pede uma gasosa, a falta de electricidade mantém-se. Desta vez tens a casa com mais habitantes, não sei se por muito tempo.
    Boa sorte para mais uma etapa.

  3. Fora o que se meteu na véspera no subwoofer… Esse apanhou-nos bem dispostos, foi convidado a sair vivo pela varanda. It’s raining mice, aleluia!

    Mas quem terá sido a alminha que tirou o bidé para colocar a máquina de roupa e não tapou o buraco de saída de águas?! Só faltou estender uma passadeira vermelha com cubinhos de queijo. Uma ligação directa ao esgoto é uma porta de entrada à bicharada, e não apareceram mais cedo porque só agora a Madame Ratatouille teve crias.

  4. TAAG com check-in on-line? Não sei porquê, mas não me parece…

  5. haaaaaa…..tá tudo dito! o meu paizinho vai em luxo então!

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