Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

01 2009

África adormecida

No regresso a Angola tive a felicidade de viajar de noite. Não só a viagem parece muito mais curta, como revela excelentes surpresas.

A partida de Lisboa, numa noite triste de Inverno, fica envolta numa bruma de sono e nuvens. Uns relances da cidade até à Avenida de Roma e depois só as luzes de Almada é que foram capazes de vencer as nuvens.

A recordação da Lua a sorrir-nos enquanto embarcávamos ficou em terra. A noite era escura. Olhar pela janela era o mesmo que fechar os olhos… fechei-os.

Perto de Casablanca, o piloto disse-nos que a cidade se podia avistar à esquerda do avião. Mentira! À esquerda havia apenas uma parede escura e, no meio do breu, só as luzes na ponta da asa faziam brilhar as nuvens.

Nos intervalos do sono que me consumia, acabei por ver uma cidade iluminada. Algumas avenidas principais e outros tantos bairros periféricos. Era pequena e pareceu-me mais organizada que Luanda. As nuvens esconderam-na. Julgo que fosse a capital do Burkina Faso, Uagadugu.

A dada altura o tecto de nuvens baixou consideravelmente e o céu negro cobriu-se de milhares de pequenos pontos luminosos. O espanto de como consegue um avião daquele tamanho voar foi substituído pela sensação de esmagamento e insignificância que os céus estrelados trazem.

Tentei reconhecer alguma constelação através da janela. Não se via muito céu, mas talvez tivesse sorte. Julguei que estava a ver o Escorpião com Antares, o seu coração vermelho, ao centro. Fiquei com a ideia de que podia estar a ser enganado pelas estrelas mais ténues, que habitualmente não se vêem. Procurei estrelas mais brilhantes. A um cantinho do meu campo visual encontrei umas quantas estrelas que me pareceram ser a constelação de Gémeos. A outra constelação não era o Escorpião.

Enquanto observava as estrelas e lutava contra o sono, alguns riscos breves assinalavam os meteoritos que tinham sido promovidos a estrelas cadentes. Nesta época do ano, com a Terra mais próxima do Sol, nem esperava ver nenhum. Em meados de Dezembro há alguns meteoritos que aparentam surgir de Gémeos… deve ter sido mesmo essa constelação que vi.

O horizonte para onde se dirigia o avião começou a substituir o breu por um risco anil que foi crescendo em tamanho e intensidade. As estrelas foram-se apagando aos poucos. Um satélite que rodopiava acima de nós, de vez em quando reflectia o Sol que já iluminava outras paragens. Um breve relampejo indicava a sua posição. Também ele deixou de brilhar assim que o céu começou a ganhar tons avermelhados.

As hospedeiras começaram a distribuir toalhetes quentes para que os passageiros encarassem o pequeno-almoço de cara lavada. Lentamente, o cheiro de comida quente começou a encher a cabina e a substituir o ressonar pesado que ainda se ouvia aqui e ali.

Abaixo de nós, um mar de nuvens onduladas ia ganhando sombras e brilhos à medida que o Sol subia. Olhando para elas conseguimos ter a noção da velocidade assombrosa a que nos deslocamos. De vez em quando, um jacto de ar branco saltava por cima da asa, mostrando o frio no exterior.

O Sol surgiu, finalmente, acima das nuvens. O seu brilho intenso e uma atmosfera muito rarefeita obrigou-me a fechar a janela. Deixei uma pequena fresta aberta pela qual espreitava as nuvens a correr ordeiramente lá em baixo.

Começámos a perder altitude e, aos poucos, mergulhámos nas nuvens. Alguns minutos depois estávamos sobre a praia de São Tiago e os seus esqueletos. Os travões aéreos faziam o A340 deixar a velocidade de cruzeiro, dando mais tempo para observar Luanda a despertar para mais um dia.

Pista 23, a mais comprida. Aterrámos com a suavidade possível. O avião percorre a pista e podemos ver os abrigos de terra e betão onde ficavam os jactos da guerra civil. Saímos da atmosfera seca do avião e descemos para o calor húmido de Luanda. Somos levados até à sala de controlo de passaportes. O senhor da camisa branca não está lá para conferir os boletins de vacinas. Os senhores que controlam os vistos, habitualmente atentos à falta desse carimbo, parecem distraídos e não implicam com ninguém por isso. Quarenta minutos depois, tenho o passaporte carimbado. À saída da sala está uma senhora a controlar outra vez os passaportes. Não sei se por desconfiança pelo trabalho dos colegas, se por suspeita de que alguém consiga passar sem os controlos habituais.

Alguns minutos depois, estou a caminho de casa, cheio de vontade de dormir seguido aquilo que dormi aos intervalos no avião.

São oito da manhã. Estão 26º. Não há luz. Bem-vindo a Luanda!

Acerca do autor

1

Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “África adormecida”

Nota: Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados.
  1. Apesar de haver não luz, não me importaria nada de trocar estes 6º que se fazem sentir aqui na tuga, por esses 26º 😉

Deixe uma resposta

Nota: Os comentários apenas serão publicados após aprovação. Comentários mal-educados, insultuosos ou desenquadrados serão apagados de imediato.

« - »