O General, a amante dele e a casa da morta
Afonso Loureiro
Quando relatamos histórias de Angola enfrentamos um grande problema, porque quase todas se enquadram na categoria do "Contado, ninguém acredita". As que assistimos fazem-nos duvidar dos sentidos e as que ouvimos levam-nos a julgar não ser mais que excertos de romances rebuscados que alguém recita tentando fazer passar por sua e verídica a história inventada. Por isso temos de adaptar o velho ditado e, para os contos angolanos, retirar uma mão-cheia de pontos, arriscando mesmo assim a passar por mentirosos, tamanha é a estranheza dos episódios.
Como todas as histórias rebuscadas, esta tem de ter um titulo sugestivo. O General, a sua amante e a casa da morta pareceu-me perfeito, uma vez que é um bom resumo do que se passou e permite aos mais incrédulos ou apressados passar à frente dos detalhes, terminar a leitura por aqui e tentar imaginar uma aventura rocambolesca com estas personagens. Ficariam desiludidos por saber que nem assim, com toda a liberdade artística possível, conseguiriam um conto tão original quanto este. Mas passemos à historia, que já é velha de 35 anos e o seu estatuto de mais-velha talvez a torne menos suspeita.
No rescaldo da ponte aérea e com os últimos cartuchos do Kifangondo a sonorizar os dias de Luanda, a D. Rita viu-se a braços com uma vivenda no Bairro Operário. As minhas fontes são omissas quanto aos anteriores proprietários, mas tudo me leva a crer que a casa fosse mesmo dela, de papel passado e tudo, mas que se tivesse mudado para outra mais espaçosa noutro bairro. Para não a deixar abandonada e convidativa a uma ocupação selvagem, arrendou-a a uma família, que fez da moradia o seu lar até aos dias de hoje.
A ordem natural da vida ditou que a D. Rita fosse ocupar um pequeno apartamento de pinho no cemitério do Alto das Cruzes no princípio da década seguinte. Era uma cave, sem grandes vistas, mas a senhora já não estava em estado de reclamar muito e aceitou a situação com resignação. Não deixando herdeiros directos, a casa e respectivas rendas passaram para as mãos de uma prima ou sobrinha, não sei bem, mas também esta, sentindo-se sozinha, mudou de residência para o cemitério sem herdeiros alguns anos mais tarde. A família da moradia deixou pagar a renda, mas não se preocupou muito com isso, porque ninguém a veio reclamar e herdeiros do senhorio eram tão raros quanto as obras de conservação da casa. Filhos nasceram, pais morreram, irmãos, sobrinhos e cunhados multiplicaram-se até uma vintena de pessoas encher a casa cada vez mais degradada. Os anos passaram-se e a guerra terminou.
Agência imobiliária
Subitamente, um general reclamou a casa da morta como sua e queria despejar os inquilinos. Não tinha documentos que provassem a pretensão, mas a palavra de um militar deveria bastar, segundo exemplos do passado. Como parecia mal aplicar as técnicas antigas e ocupar militarmente a habitação, mostrou ser um homem moderno, confiante no sistema democrático em vigor e levou o caso a tribunal, onde o processo marinou por quase uma década. Durante esse período, para grande alívio da família, o general foi fazer companhia às duas anteriores proprietárias, o que leva a desconfiar de uma eventual maldição lançada pelo feiticeiro do bairro do Pau Grande aos senhorios da casa em questão. Desconheço se o feiticeiro faz parte da trama original, mas um bocadinho de mistério e suspense adicionais nunca fizeram mal a ninguém.
A história teria ficado por aqui, não fosse a amante do general falecido reclamar ser herdeira do mesmo e manter a causa na barra do tribunal até à sentença final. Ninguém sabe ao certo que argumentos foram invocados, mas o juiz acabou por dar razão ao general, ou melhor, à sua amante que, curiosamente, mora na casa ao lado da desta história, tornando-a muito mais emocionante. Se tiver herdeiros, o que seria uma novidade nesta história, aconselho-a vivamente a fazer um seguro de vida chorudo, porque o feiticeiro já começou a dançar e a recitar o feitiço.
Xê, feitiço poderoso!
O tribunal ditou que a família fosse despejada. Dizem que vão cumprir a ordem e abandonar a casa onde muitos deles viveram desde sempre. Sentem-se injustiçados porque, apesar de concordarem que a casa não é deles, suspeitam das decisões de um sistema que teima em beneficiar os mais ricos em detrimento dos mais pobres. Esta parte da história estão eles fartos de ouvir.
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