Mas que las hay, hay
Afonso Loureiro
Uma das principais diferenças entre o europeu e o africano é relação que cada um mantém com as forças que regem a Terra.
Por estas paragens, não se pergunta se se acredita em feiticeiros ou não. Eles existem. Ponto final. A grande questão é mesmo se um dado feiticeiro é suficientemente poderoso para nos ajudar ou não.
Explicaram-me que há feiticeiros capazes de grandes magia, branca e negra. Têm sempre o cuidado de referir que a negra é a magia má, a que faz sofrer as pessoas. Depois perguntam-me porque se associa a maldade ao negro… será que tem a ver com a cor da pele? Lá tenho de explicar que não, a magia má já era negra antes dessa mania de associar todos os males a África.
Quem sabe por onde anda, tenta evitar determinadas ruas. Lá vivem feiticeiros poderosos, sem grandes escrúpulos, que conseguem fazer desaparecer o dinheiro dos bolsos das pessoas tocando-lhes na roupa com um lenço. Para mim, ocidental cartesiano, deve haver algum truque. Para o africano, é algo que acontece e cuja única explicação é mesmo a magia poderosa. O dinheiro desaparece e pronto.
Não são apenas as pessoas menos instruidas, segundo os princípios ocidentais, que acreditam nos poderes dos feiticeiros tradicionais. Na Nigéria, altos quadros de empresas petrolíferas têm sido envolvidos em escândalos de desvio de fundos para feiticeiros. Os processos do mundo ocidental podem sempre ser agilizados com a ajuda das forças anímicas de todo um continente. Geralmente acabam por desaparecer alguns milhões de dólares, juntamente com um feiticeiro. Não estou a par dos resultados…
Os feitiços passam de pais para filhos. São parte fundamental da tradição oral africana. As histórias são sustentadas pelas magias dos feiticeiros lendários, capazes das maiores maravilhas.
Os guerreiros que combatiam sem medo da balas faziam-no porque acreditavam absolutamente nos poderes do feiticeiro. Quem não acreditasse certamente seria atingido.
Quando as coisas não correm bem, a culpa será certamente de um feitiço mal-intencionado e procura-se o responsável. Na Tanzânia são os albinos quem paga as favas, com culpas ou não. Em Angola também há muitos albinos com fama de serem feiticeiros. Dizem que, como têm de passar mais tempo abrigados do Sol, vão aprendendo os conhecimentos mais obscuros com os mais-velhos. Para os lados da Guiné, um recém-nascido albino é deixado numa encruzilhada fora da aldeia, logo na primeira noite.
Os melhores feiticeiros trabalham com forças inexplicáveis e são capazes de desafiar as leis que regem o mundo ocidental. Muitos asseguram ser capazes de voar de um continente para o outro usando apenas uma casca de ginguba. Prometem apresentar provas aos mais desconfiados, mas a magia não funciona com os cépticos. Desaparecem sem deixar rasto, nunca chegando a esclarecer se a casca é de amendoím torrado ou cru. Serão aqueles que desaparecem das terras nigerianas?
Um ocidental assume que o desaparecimento do feiticeiro é a prova da do logro, mas um africano tem a certeza de que se tornou invisível apenas por falta de fé da nossa parte. Pior cego é aquele que não quer ver.
As crenças tradicionais e animistas estão tão enraizadas que se sobrepõem a tudo o resto. Tive um professor Etíope que me deu um exemplo vivido por ele. Tentando explicar uns fragmentos da cultura Oromo e Amara, as duas principais etnias etíopes, contou que, quando era pequeno, acompanhou muitas vezes o pai, pastor evangélico, nas suas viagens. Lembrava-se de ver as pessoas mais simples lançar algumas ervas à água e pedir protecção às forças da natureza antes de atravessar um rio. Achou estranho ver o pai fazer o mesmo. Como estava na idade das perguntas confrontou o pai acerca do seu comportamento. Afinal de contas, era um pastor cristão.
«Há coisas que nem Deus explica. Se queremos atravessar em segurança, temos de ter a natureza do nosso lado. Faz como eu.»
O Mistério da Fé aplica-se não só à transmutação do pão e do vinho…
Transmutação das letras
Por muito que conheçamos as tradições e crenças dos povos, nunca as poderemos compreender totalmente. Falta-nos a vivência desde a idade em que aprendemos como funciona o mundo. Nunca haverá um ocidental a acreditar na veracidade de todos os relatos de feitiços, mesmo que seja o maior especialista na área. Duvidará sempre e tentará explicar as coisas de outro modo, mais adequado às suas próprias crenças. É quase como ver um ocidental budista. Pode conhecer todos os ritos, todos os provérbios e toda a mística associada ao budismo. Pode até ser um praticante acérrimo e um defensor incansável, mas, por muito que tente, nunca será budista. Faltar-lhe-á sempre o crescer dentro do budismo, de aprender aquilo que não se pode ensinar.
Essa parte de voar de um continente para outro numa casca de ginguba interessa-me… tenho muitas saudades tuas.
Dizem que a fé é que nos salva, mas também é um grande mistério.
Enquanto não descobrires a “tal” casca de ginguba, com dose q.b de fé, já incluída para o utilizador, não arrisques a viagem, pode ser perigoso dsafiar a natureza, que o diga Ícaro.
Bons voos, nas asas da fantasia.
Beijos, muitos.