Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

12  11 2008

Nád’Angô

Apenas as línguas a poucos anos de entrar na categoria de língua morta se podem orgulhar de não ter sotaques regionais. Quanto menos falantes, menor a diversidade. O Português, felizmente, ainda conta com um sem-fim de sotaques, regionalismos e versões internacionais.

Cada povo introduz o seu sotaque e a sua maneira muito própria de interpretar a língua. Cada região vive a língua à sua maneira, adaptando-a às circunstâncias do momento. É isso que a mantém viva.

Para quem ainda não se habituou à diferente pronúncia de alguns fonemas ou às contracções de certas sílabas, os sotaques que diferem muito da língua-padrão podem parecer um idioma novo. Isto é verdade para qualquer língua. Quem já ouviu Francês canadiano, o famoso Quebeqois, pode ficar com dúvidas quanto às suas semelhanças com o Francês original ou até mesmo com o que se fala na Bretanha ou no Congo. Ninguém diria que os Mexicanos falam Castelhano, tais são as diferenças para o que se fala lá na Ibéria.

Nos primeiros dias em Luanda, confesso que tive alguma dificuldade em habituar-me não tanto à pronúncia das palavras, mas ao ritmo com que são faladas, com pausas inesperadas, oriundas directamente do ritmo das línguas nacionais.

Nas conversas que vou tendo, as coisas agora são fáceis. Até dou por mim a falar com o mesmo ritmo, misturando algumas palavras de kimbundu lá pelo meio e trocando as tónicas aqui e ali. Sou mais bem entendido assim.

Mesmo assim, ainda há situações em que me sinto perdido, sem perceber patavina. Um bom desafio são os pregões das zungueiras.

Levei alguns dias a destrinçar o que era o chamamento da peixeira do anúncio da mercadoria. Agora já sei que o Aiêêêkarapawê quer dizer carapau, ou peixe-carapau, como aqui se chama. Aliás, são estas pequenas diferenças, chamar peixe-carapau ou pão-carcaça, que quebram o ritmo a que estamos habituados. A mistura de alguns verbos do kimbundu, com conjugações diferentes do que esperamos, também não ajuda. Zungar, por exemplo significa passear, mas quando aplicado à venda nas ruas pode ser conjugado como vender. Se me disserem que andam a zungar abacaxis percebo logo onde querem chegar.

A aprendizagem dos pregões é lenta, quem vende está sempre a andar de um lado para o outro e não ouvimos muitas vezes o chamamento. Outras vezes nem vemos a mercadoria.

Mas houve uma vez em que tive sorte.

Saí de casa e ouvi, bem alto, NÁD’ANGÔ, NÁD’ANGÔ 50 Kwanz!

Tentei perceber o que vendiam, mas não consegui. Segundos mais tarde, NÁD’ANGÔ, NÁD’ANGÔ 50 Kwanz!

Estava mais próximo, mas continuava a não perceber. Virei a esquina e vi um rapaz sentado no chão. Gritava NÁD’ANGÔ, NÁD’ANGÔ 50 Kwanz! Aproximei-me mais e vi uma pilha de jornais à sua frente, junto das canetas e desodorizantes para automóvel que também vendia. No chão tinha um papel com «50 KZ» escrito a vermelho. Continuava a gritar NÁD’ANGÔ, NÁD’ANGÔ 50 Kwanz!

Quando passei por ele, vi o título do jornal. Jornal de Angola. 50 Kz!

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “Nád’Angô”

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  1. Estou a ver que com a tua adaptação aos ritmos, às pronúncias e até ao uso de umas palavras em Kimbundu, vamos ter dificuldades em te perceber…

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