Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

07 2009

A obra perpétua

À medida que vamos conhecendo os recantos e vielas da cidade, descobrimos que tudo existe numa espécie de mutabilidade estática, onde o que parece terminado ainda está por fazer e o provisório é definitivo.

A um dado momento, qualquer sítio está em obras. Não quer dizer que as obras não avancem, porque até vamos vendo evolução, mas, assim que são dadas como terminadas, alguém se lembra que ainda não está perfeito e nova empreitada é adjudicada.

Por vezes, o único defeito da obra parece ser o empreiteiro a quem foi adjudicada, porque, apesar de ficar com bom aspecto, é tudo demolido e em uma empresa diferente refazer. Garantida, julgo que esteja uma choruda gasosa a cada intervenção.

Na Avenida Revolução de Outubro, que liga o aeroporto ao centro da cidade e comemora uma data histórica que nada deve dizer aos angolanos, um pouco antes do túnel que desagua na vista sobre o Catambor, há um separador entre os dois sentidos. Antes das eleições começava por ser um pequeno lancil cinzento que se tornava um duplo traço contínuo a caminho do viaduto.

Nesta mesma zona há um mercado informal de cada lado da avenida. Zungueiras e quitandeiras andam em azáfama constante, mudando de pouso, indo buscar mercadorias, negociando. Por ser uma zona comercial, é destino certo de centenas de candongueiros que param em segunda, terceira ou quarta fila para carregarem novos passageiros.

Para evitar esta confusão, com constantes atropelamentos e candongueiros em mão contrária, alguém, muito acertadamente, resolveu construir um separador central decente. As máquinas vieram, os homens também. Durante umas semanas o trânsito foi um pouco mais caótico que o costume, mas o separador lá nasceu, de blocos jersey e grades metálicas pintados de branco e vermelho. Surgiu também um semáforo que, aos poucos, começou a ser respeitado por automobilistas e peões.

O separador tinha a altura exacta para que as zungueiras o conseguissem saltar com a carga à cabeça, passando uma perna de cada vez por cima dele, mas dava mais trabalho do que ir até à passadeira e o número de peões a cirandar pelo meio do trânsito diminuiu ao longo dos meses.

A avenida bem precisava de um separador igual até à Maianga, mas a obra recomeçou exactamente neste troço. A decisão, desta vez, foi de colocar um lancil amarelo canário onde estavam os blocos vermelhos. Mais umas semanas de obras, com engarrafamentos piores que o costume, foram suficientes para a troca. Agora, sem esforço nenhum, temos outra vez peões e motorizadas a atravessar por tudo quanto é sítio. Os meses de educação forçada foram por água abaixo. Melhor ainda é que os locais para as passagens de peões não batem certo com os semáforos instalados na primeira obra. Já estou a imaginar qual vai ser a próxima empreitada.

Um pouco mais à frente, junto do Jacaré, uma empresa ganhou a empreitada de reabilitar passeios do Prenda, mas parece que não interpretaram bem o caderno de encargos. Traduziram reabilitar por partir os que já existem e estão em bom estado e fazer uns exactamente iguais, no mesmo sítio. As ruas que não têm passeios não precisam de reabilitação, está claro.

Blocos de betão dos passeios demolidos
O que resta dos passeios antigos

Não deve ser só a mim que choca este desperdício de mão-de-obra, máquinas, materiais, tempo e dinheiro (o tal que está escasso nos cofres do Estado). O homem sonha, a obra nasce, a gasosa aparece.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

Uma resposta a “A obra perpétua”

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  1. Embora não tenha a ver exactamente com o principal motivo deste post, o comentário que me ocorre tem apenas a ver com nomes e memórias de Luanda.

    É mencionado a meio do post o nome de CATAMBOR, referindo-se a um bairro muito antigo, que noutros tempos era um pequeno muceque com esse mesmo nome CATAMBOR.

    Ora acontece que esse nome escrito e pronunciado dessa maneira por todos, (ex. Pepetela), não era pronunciado pelos habitantes predominantes desse bairro, (malanginos do lado do aeroporto, quibalas do lado da maianga).

    Esse nome era pronunciado como CATOMBÔLÔ.

    Não tenho dúvidas que é um nome angolano de origem africana. só não sei o significado por falta de curosidade à 35 anos.

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