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Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

16  11 2008

A Cabala do Kwanza

Na minha primeira tentativa para a Muxima, o trânsito para Sul fez-me desistir de seguir pela costa até ao desvio para o santuário. Nos mapas aparece um caminho mais curto, que começa em Catete e atravessa o Kwanza numa povoação chamada Cabala. Com as seguintes tentativas frustradas para chegar à Muxima, comecei a pensar se não seria tudo uma cabala para eu não conhecer o sítio.

Lembrei-me que no Jornal de Angola vinha a notícia de que a nova ponte da Cabala tinha sido adjudicada já em 2006, pelo que seria bastante provável haver uma passagem transitável. Entre ficar parado no trânsito ou ir conhecer outros recantos de Angola, optei pela segunda opção.

À saída de Catete esperava-me uma estrada acabada de arranjar. Bom sinal. Vinte e muitos quilómetros de asfalto novo, com obras de arte capazes de resistir às chuvas e tudo.

A seis quilómetros do Kwanza, o asfalto acabava. As obras de compactação das terras ainda estavam a decorrer. Há, concerteza, avenidas com mais buracos em Luanda.

Aos poucos, o povoamento vai ficando menos disperso. As duas ou três cubatas à beira da estrada passam a meia-dúzia e depois a uma vintena.


As crianças estão em todo o lado

Algumas lavras encaixadas entre colinas, com o Kwanza ao fundo, denunciam uma terra fértil. É natural que cá haja gente.


A primeira impressão da Cabala

À medida que nos aproximamos daquilo que parece ser a curva mais bonita do Kwanza, adivinhamos uma terra bonita, a descer para o rio. As cubatas modestas e as casas degradadas relembram os anos de privações, mas o cenário é excelente.

Claro que o ponto alto da Cabala é o rio e a famosa ponte. A estrada que liga a Catete termina mesmo no rio, por isso damos logo com ele. O que se passa do outro lado parece que foi montado para um filme. As árvores, a curva da estrada e a própria jangada azul. A qualquer momento se espera ouvir um “Corta!” e pessoal a correr de um lado para o outro, desmontando o cenário. Mas não, é tudo verdade. Só a ponte é que ainda não…

Um pouco a jusante da jangada, começou-se a montar uma ponte flutuante. Para já, a jangada vai funcionando, como tem feito nos últimos anos.


Cenário de filme

A princípio, não percebi porque razão estava a jangada pintada de azul. Não é uma cor que estivesse à espera. Antes de a ver, contava que fosse verde-tropa ou vermelha e preta.

Depois percebi. É um transporte público. Só lhe falta uma risca branca! E, como bom candongueiro, buzina às árvores, aos peixes e aos pássaros.


Adorna um pouco para bombordo, é certo

A jangada tem um barqueiro de cada lado. Cada um controla uma hélice, procurando não atrapalhar o outro. A atracagem é feita de forma algo rudimentar, acelerando a fundo perto da margem, para que as rampas se enterrem um pouco. Às vezes é preciso usar uma enxada para encher o buraco deixado.


Tomando balanço

A jangada transporta tudo e todos. De uma margem para a outra.


Marcas da guerra

Se não houvesse esta travessia, a estrada que se vê do outro lado estaria a quase trezentos quilómetros. A Cabala é, portanto, um local de passagem importante. É claro que tem o seu mercado. Vendem-se cá os produtos da terra. E quem atravessa o rio, costuma cá vir espreitar a mercadoria.


Regateando as cebolas

Da primeira vez fui sozinho e ao final da tarde. Da segunda, fomos os três, para preparar a ida à Muxima por um caminho alternativo.

Entrar com o carro requer alguns dotes de equilibrismo. As pranchas estão tão afastadas, que não há muito espaço para descuidos.


O piloto

Quem vir os pilotos a trabalhar, pode julgar que o controlo mais importante é o botão que acciona a buzina.

Acelerador a fundo e uns toques no leme chegam para que a jangada se atire para o meio do rio. Um pouco depois, um choque indica que chegámos à outra margem. A travessia é rápida. Em menos de três minutos já se tem o carro em terra. Quase nem temos tempo de tirar fotografias.


Operando o motor de estibordo

Do rio temos uma visão diferente do mundo. Por momentos somos apenas viajantes. Dentro da jangada não havia pretos ou brancos. Todos observavam a margem com atenção.

Os barcos têm esta capacidade especial de nos fazer focar a atenção nos pormenores que nos mexem cá dentro. Não é só a paisagem, é tudo o resto; as emoções e as memórias que se misturam com a agitação das águas. Dei por mim a pensar na Baía de Setúbal, que deve ser das mais bonitas do mundo para se ver de barco. De imediato me lembrei da comparação que fiz entre a partida da cidade e ao final dos filmes de Jacques Tati. Nostalgia do tempo que já passou? Saudade do tempo que nunca foi?

Nisto, a vida do rio mistura-se com estes pensamentos e um pescador lança a rede com mestria.


Pescando

Do outro lado esperava-nos um mangueiral com uma sombra acolhedora. Almoçámos. Algumas pessoas tratavam de pôr as sestas em dia, gozando a leve brisa que corria ao longo do rio.


A ponte flutuante, quase acabada

Também nós contemplámos a paisagem e olhámos, com uma certa cobiça, para as mangas que amadureciam por cima das nossas cabeças.


Marcas da civilização

As águas do Kwanza, a montante de Luanda, não estão muito poluídas. A pressão humana é pequena e as lavadeiras não sujam assim tanto a água. Mesmo assim, ainda vimos uma garrafa de cerveja passar por nós. Duvido que levasse alguma mensagem.

Enquanto as crianças chapinham e riem nas águas menos profundas, as mães lavam a roupa numas pedras grandes colocadas na margem. Algumas carregam o filho às costas enquanto lavam. As outras fazem-no, com a maior naturalidade, de tronco nú.


As mães lavam e os filhos brincam

É curioso que, tão perto de Luanda, se encontre um recanto tão pacato, onde os ritmos são bem mais ajustados à vida das pessoas. Aqui ainda se vive, não se corre.


Tradições

A despedida da Cabala acabou por ser só um até já. Daqui a uns dias voltamos a cá passar, em direcção à tão esquiva Muxima.


Como sempre, a companhia foi excelente

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

5 respostas a “A Cabala do Kwanza”

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  1. Olá Afonso
    há já algum tempo que sigo aqui fielmente o blog o qual está adicionado aos meus favoritos.
    Hoje queria agradecer pela partilha e o ir mostrando um pouco mais de Angola. è mt bom sobretudo para quem está em Portugal ir sabendo o que vai acontecendo por aí, sem ser pelas “notícias”….
    tb uma vez no norte de Angola eu senti o peso do olhar “dos brancos não andam a pé”….
    Votos de bom trabalho
    um abraço
    FR

  2. Angola não para de surpreender pelos recantos tão bonitos que tem. Desta vez fomos presenteados com a Cabala do Kwamza e pela aventura de andar de jangada… ficamos à espera de outras.

  3. Ola Afonso,fiquei fascinada com as imagens de angola publicadas por si.Eu escrevo-lhe porque nasci em angola cresci com os meus avos e depois da independencia nunca mais soubemos nada do local onde viviamos propriamente na demba chio.Nao sei se ja alguma vez passou por la o meu avo tinha uma casa de comercio no chio.Nao sei se a casa ainda existe se o afonso por acaso tivesse fotos ou soubesse algo agradecia-lhe imenso.Nao lhe roubo mais tempo,desejo-lhe muita sorte na sua caminhada e que deus o acompanhe sempre.Um abraco e ate a sua resposta.
    Maria

  4. Se passar no Chio, vou tirar umas quantas fotografias. Pode ser que a loja ainda exista.

  5. Amigo Afonso
    Muito obrigado por ter publicado, e dado a conhecer ao mundo, o maravilhoso texto e fotografias da jangada, da ponte flutuante, das margens do rio Kwanza e das pessoas da povoação da Cabala. Embora viva em Angola hà largas dezenas de anos, vou à Muxima pela primeira vez no domingo (27/9/2009, e até ter aberto o seu blog, o meu iteneràrio era Luanda/Cabo Ledo/Muxima, duzentos e tal Kms que exigiriam logistica especial particularmente em gasolina. Agora vou seguir a rota que descreveu, Luanda/Catete/Cabala/Muxima, fazendo bastantes menos Kms e sem problemas de gasolina. Certamente almoçarei (piquenicando) à sombra das mangueiras do outro lado do rio. Mais uma vez muito obrigado – José Alberto
    PS, sou de raça branca e de algum tempo a esta parte faço o percurso trabalho/casa a pé, por volta das 17H00. Realmente faço o papel de um bicho raro. Um abraço

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