Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

18  12 2008

Batendo o funge

A caminho do Dondo, numa praça antes de sair da província do Bengo, parámos para esticar as pernas e comer qualquer coisa.

Eram nove da manhã e as mulheres já estavam a preparar o almoço. O carvão ardia e aquecia panelas de água para o funge. Algumas mulheres raspavam o pelo de pedaços de bichos variados. Porcos, pacas e veados jaziam aos pedaços sobre plásticos sujos. Todo o trabalho era feito no chão, ao lado de outras mulheres que varriam o pó da sua loja. Cozinha-se na frente da cabana, mais próximo da estrada, para poder mostrar o prato e melhor controlar a clientela.

Para dentro de alguidares coloridos, cortavam a carne aos pedacinhos e juntavam tempero, enxotando as moscas insistentes. Algures atrás das cabanas onde servem os clientes, iam buscar água para cozinhar. Era um líquido amarelo, que sugere tudo aquilo que os médicos nos dizem que acontece em África…

Enquanto umas tratavam da carne de de dosear o concentrado de tomate na panela grande, outras peneiravam a fuba, rejeitando a farinha mais grosseira. Até aqui as angolanas demonstram uma maior organização que os angolanos, trabalhando em equipa.

Como estava encostado ao carro, aguardando o regresso do meu colega, convidaram-me a sentar numa das cabanas. Aceitei e pude assistir bem mais de perto à preparação do almoço.

Na cabana ao lado esfolavam uma Paca, uma espécie de roedor grande. Um pouco mais ao lado, uma perna de porco, ainda com o rabo agarrado, era transformada em tiras. À minha frente, estava a metade posterior de um bicho desconhecido. Perguntei qual era a ementa. Funge com veado. Ementa fina!

Entretanto, a fuba tinha sido toda peneirada e a água do panelão que estava nas brasas mostrava uma bolinhas nervosas. Era a hora de bater o funge. Uma das mulheres pousou a panela no chão e sentou-se numa grade de cerveja. Molhou o pau do funge, que parece um remo curto, e segurou a panela entre os pés. Meteu duas mãos-cheias de pó branco na panela e começou a mexer devagar. Juntou outras duas e continuou a revolver a farinha, sempre ao mesmo ritmo. À medida que a mistura engrossava, fazia mais força, notando-se os músculos dos braços e das costas a ficar mais tensos. Mais um pouco de farinha e agarrou no remo curto com determinação. Começou a bater o funge mais depressa, fazendo as barrigas dos braços abanar. Na verdade, todas as pregas de pele e carne do tronco abanavam. Mesmo de costas, viam-se-lhe as mamas a saltar de um lado para o outro, compassadas. O suor tornou-lhe a pele luzidia. De vez em quando parava, queixando-se das costas. O funge colava cada vez mais. Virou a grade de lado, para mudar de posição e voltou a atacar a pasta amarelada da panela. Cerrava os dentes e sustinha a respiração a cada volta que dava à panela. Os braços cada vez mais tensos faziam adivinhar a força que fazia. Depois parou. Usou uma colher para ver a consistência do funge e deu-lhe mais uma volta. Limpou o suor da testa com as costas da mão, compôs a roupa e levantou-se.

Tenho de admitir, a receita do funge é básica: fuba e água. Aquilo que não me explicam é que é preciso muita experiência e suor para acertar nas proporções e conseguir uma pasta homogénea.

O veado já estava todo na panela, e começava a cheirar bem. Fiquei com pena de não o provar, mas era preciso seguir viagem.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

8 respostas a “Batendo o funge”

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  1. Excelente descrição… consegue-se ver sem ter visto.

  2. Poh, mas o tal veado não era a mesma carne que estava no chão, com as moscas? Mesmo cheirando bem, eu tinha deixado passar 🙂

  3. Sim, o veado estava no chão, como o resto da carne. Obviamente que não seria a coisa mais acertada do mundo, mas sempre podemos fazer de conta que as longas horas de cozedura acabariam por matar os bichos.

    Ao menos ali sabe-se com o que se conta…

  4. Eu ando a pensar abrir um McDonald’s por essas bandas…acho que ía ter clientela!

  5. Bem observado, mas devia ter provado, um bom fúnji de carne, mesmo de caça é maravilhoso. A farinha é a fuba, de mandioca (Bombó), no sul usa-se mais a farinha de milho.
    A carne de caça, costuma ter um cheiro caracteristico, que aumenta se o animal não for logo sangrado, mas guisado, com com kiabos,tomate e cebola e depois ajindungado no prato, é um pitéu.

  6. Imagético ao limite.
    extraordinário.
    Muito convidativa a descrição à prova de tal manjar.
    uma Abraço

    sal

  7. Já provei várias versões do funji de carne e todas eram deliciosas. Desta feita ainda era cedo. Às nove da manhã ainda só estavam a cortar os bichos aos bocados. Talvez numa outra altura.

  8. kamba como é que um homem da frieza da engenharia consegue transbordar tanto calor humano ??????
    quanto ao comer claro que comia e com as maos ,como sempre comi em angola durante toda a minha infançia adolescençia 18 anos e nao morri apanhei todas as doenças que havia que apanhar e o corpo criou defesas , hoje a viver na suiça onde os virus sao todos esterelizados sinto saudades de um viruzito , pois os meus anticorpos devem estar a morrer de tedio rsrsrsrs
    acho que na europa se ezajera com com a eliminaçao total das bacterias dos alimentos todos esterelizados ao maximo depois o corpo nao tem defesas e depois vai-se para africa e entao é melhor nao comer nao !!!!

    caté . kandados

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