Cada vez sei menos…
Afonso Loureiro
À medida que me vou ambientando a este país tão grande e tão novo, sinto que é difícil perceber o quão diferente é do sítio que me viu crescer. Se, quando cheguei, aquilo que me surpreendia eram as semelhanças, agora sou confrontado com as diferenças gritantes, com as coisas que não fazem sentido aos olhos do ocidental, com as coisas que só se percebem se se tiver crescido aqui. São uma espécie de expressões idiomáticas a que possamos talvez chamar comportamentos idiomáticos. São impossíveis de traduzir por palavras, embora se perceba parte do significado.
O Futuro
Angola é uma terra simples, mas muito complicada. Simples no aspecto em que se percebe como funcionam as coisas e qual o rumo a seguir, mas complicada porque nada tem um percurso linear. Se queremos ir do Gamek ao Benfica temos de atravessar a vala. Para o outro lado são umas centenas de metros, mas o trajecto é de vários quilómetros e varia consoante o carro e o condutor. Há ruas que desaparecem de uma semana para a outra porque se construiu uma casa no meio ou as chuvas estragaram o caminho. As compras na rua implicam regateio, embora haja um preço fixo implícito. À saída do supermercado está um segurança que assina o talão de caixa e confere os sacos…
Contrastando com a falta de condições em grande parte da cidade, devidas à sobre-exploração ou inexistência das infra-estruturas, decorrem obras de grande envergadura um pouco por toda a parte. Algumas com o objectivo de melhorar estradas e serviços públicos, outras para a criação de novas zonas na cidade. Provavelmente já alguém se apercebeu que grande parte dos problemas de Luanda se resolvem começando de raiz…
A famosa marginal de Luanda está irreconhecível
Nestas minhas deambulações pelos arredores de Luanda tenho-me cruzado com muitas pessoas. Geralmente mais novas que eu. A esperança média de vida em Angola não é conhecida por ser das mais altas. Também por essa razão, os mais velhos gozam de um estatuto especial. Há respeito até no trato. As mulheres passam a ser chamadas de Mãe e os homens de Pai a partir dos cinquenta anos. Mais–Velho é usado como se fosse um título. Hoje pude conhecer um casal de Mais-Velhos. Ela com 69 anos e ele com 75. Moram numa casa que foi construída ainda no tempo do colono, no ano em que a minha mãe nasceu. À volta não havia nada, mas agora surgiu um bairro de renda controlada e uns milhares de barracas na direcção da cidade.
Fiquei de regressar para entregar uma fotografia ao casal
Aventurei-me também na cozinha com ingredientes locais. Comprei duas mandiocas, que cozi e tentei transformar, sem grande sucesso, em puré. Juntando esta papa a um refogado e uns pedacinhos de frango fiz uma espécie de coisa vermelha em pasta com um travo a mandioca e tomate. Acompanhado com arroz até parece comida. Foi o meu almoço e ainda não morri, mas aprendi uma lição valiosa: a mandioca cozida é muito quente!
Embondeiros nos arredores de Luanda
Nem sei que diga
O trânsito de Luanda é sempre mau, mas há alturas em se transforma num nó górdio descomunal. Assisti, num mercado concorrido, a duas filas de candongueiros tentarem ultrapassar os colegas de profissão que paravam à direita para largar e recolher passageiros. Estas três viam a sua progressão dificultada porque no sentido oposto havia outras três a fazer o mesmo. A rua permitia apenas duas filas de trânsito! Para agravar as coisas, havia cruzamentos e como nunca ninguém dá uma abébia, a regra é furar até que o outro já não consiga avançar sem bater. Foram longos minutos sem sair do mesmo sítio, sem sequer poder abrir a porta para sair e esticar as pernas.
Na falta de bonecas, uma garrafa
Na maioria dos bairros que tenho visitado, há latrinas públicas. Assim evita-se que os dejectos vão parar directamente a vala no meio do bairro e melhoram-se as condições de salubridade. São despejadas periodicamente por camiões com bombas. Esses camiões, por sua vez, despejam a carga no curso de água mais próximo, às vezes a montante do bairro onde foram despejar as latrinas. O sistema existe, mas não funciona.
Na zona oriental de Luanda, vi camiões-cisterna a bombear água dos rios para abastecer os tanques dos bairros. Na verdade bombeavam uma água lamacenta, cor de café com leite. Não me custa a crer que estes camiões também façam o serviço de despejo de latrinas…
À espera da água
Na minha opinião sabes cada vez mais… tens a possibilidade de ver com os teus próprios olhos a realidade crua e dura de um país. Ninguém te contou como era, tu próprio viste e isso vale muito.
Gosto muito destes teus relatos, apesar de ir conhecendo uma realidade pobre e triste.
Só ontem tive oportunidade de ler este teu relato de novas aventuras (tenho de estudar para os exames logo arranja-se tempo para tudo :P)
Qual Cadilhe, qual Sousa Tavares.. ler este teu blog é quase como ver e sentir esta Angola que partilhas connosco.
Tens aqui um leitor assíduo (até já tens lugar na barra do firefox 😉 ).
Só me resta mandar um grande abraço em bytes e bits e felicidades binárias para ti.
Olá Abri ontem um blogue. E quando pediram um nome saiu-me só a frase CADA VEZ SEI MENOS. E fiquei surpreendida quando encontrei aqui este espaço com o mesmo nome.
Na verdade, só este artigo se chama “Cada vez sei menos”. O espaço que o alberga chama-se Aerograma.
Esta cena se repete aqui no Brasil. No nosso nordeste as famílias andam quilômetros atrás de água sem que os governos façam nada de efetivo. Se pobreza e analfabetismo fossem doenças contagiosas e pudessem contaminar a elite, certamente já teriam descoberto uma vacina prá ela.
Já pude perceber que não fui o único a ver semelhanças entre a miséria em Angola e em algumas regiões do Brasil onde a infra-estrutura é muito precária.