Luanda, outra vez
Afonso Loureiro
Depois de ter visto vender peixinhos dourados na rua apercebi-me de que seria interessante descobrir o que mais se vende nesta Luanda tão enigmática. Há coisas que me surpreendem verdadeiramente. Um artigo que se pensaria ser de luxo são os gelados, no entanto é frequente ver sair de uma saca de serapilheira pequenos copos ou cones de bolacha recheados de gelado branco ou rosa. É um prodígio com este clima! Deve ser algo muito barato porque mesmo nas zonas mais modestas há montes de miúdos a lamber gelados.
Outra coisa que se vende muito são baldes e alguidares de plástico. Como são objectos leves, as pilhas que as mulheres levam à cabeça são monstruosas. E muito coloridas. Hoje vi uma vendedora com algumas dúzias de alguidares à cabeça, dois baldes enfiados nos braços, recheados de baldes mais pequenos e pás do lixo e, para culminar, uma pilha de cadeiras amarradas às costas como se de uma criança se tratasse.
Em equilíbrio perfeito
Às costas leva cadeiras de plástico
Para além das torradeiras, ferros de engomar, auto-rádios e outros aparelhos, há um mercado fluorescente de extensões, triplas, quádruplas e cabo a metro. Pilhas de todas as formas e feitios, até mesmo as de tamanhos esquisitos, aparecem em cada esquina.
Os vendedores de cadeados transportam cadeias de aloquetes enfiados uns nos outros, como se fossem correntes. O mercado dos cadeados e fechaduras nunca será saciado. Aliás, as trancas, grades e jaulas são uma coisa a que nos habituamos em Luanda. Todas as janelas têm grades, todas as portas têm uma segunda porta que se fecha com um ou mais cadeados. Cada pátio está trancado, aferrolhado e vigiado. Até mesmo os carros costumam ostentar, como acessório de decoração, um cadeado preso debaixo do pára-choques dianteiro.
Por acaso temos alguma sorte. Onde moramos não temos grades nas janelas nem na porta da frente. Pelo menos não temos a sensação de estar numa prisão.
Entrar no carro e trancar as portas passa a ser um gesto mecânico. Tal como andar sem cinto de segurança nos faz sentir nus, andar de portas destrancadas dá-nos a sensação de que andamos mal agasalhados. O condutor que me tem levado às zonas menos turísticas costuma andar de portas abertas, mas mesmo assim há zonas em que as tranca. E ele está cá desde 1961… Anda descontraído, mas usa o relógio na mão direita, a que está mais longe da janela.
Lembro-me de, há uns anos, um algarvio dizer que não gostava de Lisboa porque se ouviam muitas ambulâncias. Luanda, nesse aspecto, é um sossego. Excepto se estivermos doentes… A maioria das sirenes que se ouve são carros blindados ou de motas da polícia.
Hoje aproveitei o final do dia para colocar a rede mosquiteira que trouxe de Portugal. Não poder abrir as janelas por causa dos mosquitos é aborrecido. Se a casa está quente, o que é natural (afinal estamos em África), liga-se o ar condicionado, não vá aparecer um mosquito carregadinho de paludismo e com vontade de nos picar. Os angolanos que passavam na rua é que devem ter pensado que os brancos deste primeiro andar piraram de vez. Em vez de oferecer uns Kwanzas para que lhes façam as coisas, aventuram-se na bricolage… Como as janelas são de correr, a rede tinha de ser colocada por fora. Para colocar a rede por fora precisei de estar de cócoras no parapeito e tive de saltar para a varanda para voltar a entrar em casa. Deve ter sido um espectáculo lindo. Felizmente que jogava a selecção e ninguém reparou em mim. Depois fui dormir uma sesta com a janela escancarada!
Vi hoje uma obra de chineses. Foram os únicos que não cumpriram a tolerância de ponto decretada. Num buraco estavam seis chineses a cavar, com mais um cá fora a olhar para o buraco. Há uma certa harmonia cósmica entre eles e os angolanos, que cumpriram a tolerância de ponto. Ainda ontem vi um buraco com seis angolanos à volta a olhar para um que lá cavava dentro. Yin-Yang?
A tolerância de ponto de hoje foi algo surreal. Um pouco antes do meio-dia soubemos que a função pública tinha tolerância de ponto a partir das 12:00 e os funcionários privados a partir das 15:00. Motivo: o jogo da selecção nacional angolana contra o Uganda, no Estádio dos Coqueiros. A capital parou. À excepção de sete chineses, claro.
És um verdadeiro artista (bricolage e equilibrismo).
No Largo da Maianga parou-se de outra maneira: nem à hora do jogo deixou de haver engarrafamento! Toda a gente queria ir ver os palancas na tv…
Afonso, ganhaste mais um leitor…
Um grande abraço.
Melhor do que ler um roamnce. Vê lá se isso tudo compiladinho depois não dá um livro ou coisa parecida. Entretanto planta já a árvore que depois quando voltares só falta fazer mais uma coisa.
Abraço, DP