Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

22  06 2008

Fim-de-semana

Fez ontem uma semana que cheguei a Luanda. Deveria ser a altura de fazer um balanço, mas não sei se o consigo fazer.

Dizem que no dia em que se chega a um país sabemos o suficiente para poder escrever um livro, mas que ao fim de um mês o conhecimento só enche uma página e ao fim de um ano escrevemos uma linha.


A origem das águas das valas

À medida que fui vendo mais do que contava num tão curto espaço de tempo, fiquei a conhecer aquilo que só deveria ter presenciado num ano e não me sinto capaz de fazer um balanço decente. Não sei se o mais importante de Angola é a Luanda que me envolve, ou se são os pôres-do-Sol que ainda não pude apreciar. Sinto que é uma experiência enriquecedora do ponto de vista humano. Conhecer como é a vida do outro lado ajuda-nos a pôr em perspectiva muitas coisas que damos como adquiridas. Ainda não consigo imaginar como será um dia que seja de um Kaluanda do musseque, muito menos uma vida inteira. As minhas necessidades básicas são muito diferentes. Pequenas coisas para mim, são enormidades para quase todas as pessoas com quem me cruzo na rua. A falta a água é um aborrecimento, mas queixo-me porque não tenho água na torneira! Há quem não tenha água corrente no bairro! Não há electricidade? Liga-se o gerador… Não há comida em casa, almoça-se fora…


Eu abro a torneira…

Até mesmo a escala monetária com que trabalhamos é completamente diferente. Há umas semanas o R. achava que as notas de Kwanza tinha valores muito baixos, porque está habituado a começar os pagamentos com 100 Kz. Tenho assistido a conversas ao final do dia em que se discutem lucros diários na ordem dos 70 Kz, que são um pouco menos de 0.70€! Uma lata de atum custa 153 Kz…


Uma grade custa 600 Kz. Cada garrafa é vendida a 50 Kz. Lucro por grade 100 Kz. Peso da grade 18 Kg.


Tudo se transporta à cabeça

A falta de condições e a dificuldade em sobreviver fazem com que as mais variadas igrejas evangélicas vão despontando por todo o lado. Algumas foram proibidas, como a Maná, mas sobram mais umas centenas cuja principal preocupação é encolher os já magros recursos dos angolanos.

Quiosque Multiperfil Evangélico da Igreja Evangélica do Poder de Deus em Angola?!?!?

Mas ontem foi dia de esquecer os problemas dos angolanos. A bem da sanidade é preciso focarmo-nos nos nossos. Fomos ao Jumbo comprar mantimentos. Aproveitei para tirar mais algumas fotografias que ilustram os aspectos da vida em Luanda.


O lixo vê-se sempre


E as obras estão por todo o lado

Tal como a relação com o lixo, a relação dos africanos com a construção civil também é muito diferente da ocidental. As fachadas dos edifícios de Luanda apresentam-se sempre muito heterogéneas. Desde 1975 que têm vindo a sofrer alterações ditadas quer pelo gosto, quer pela necessidade de quem lá mora: janelas de tamanhos vários e cada uma alinhada com elementos diferentes, com portadas coloridas ou enferrujadas, portas com ou sem grades, varandas fechadas a tijolo ou madeira. Sempre que há a necessidade de se fazer uma alteração na casa, faz-se. Mesmo os edifícios da década de 1980 já mostram sinais de alterações profundas. Onde se nota uma maior liberdade construtiva é na instalação das máquinas de ar condicionado. As fachadas vão sendo esburacadas não interessa muito bem onde. O buraco à volta do aparelho depois é enchido com qualquer coisa.

Se durante a semana o trânsito de Luanda é caótico, ao fim-de-semana é um caos mais fluido. Há menos trânsito, mas subsistem os engarrafamentos nos pontos críticos. A fuçanguice dos candongueiros piora as coisas. Como há menos clientes, a competição é feroz. Na ânsia de chegar primeiro, circula-se pela direita para virar à esquerda, contornando todos os que se colocaram na faixa devida. Mais à frente ninguém os deixa entrar e entopem o cruzamento todo.


As frotas têm sempre nomes sonantes


Ou que demonstram orgulho


Ou usam chavões


Ou são incompreensíveis


Ou são só parvos

Infelizmente os candongueiros são necessários. Os pouco autocarros que vi circular eram mesmo muito poucos e só fazem serviço urbano. Os musseques não têm sequer ruas capazes de aceitar veículos daquelas dimensões.


O estado de conservação não é famoso

Ao longo desta semana tenho assistido à condução mais agressiva do mundo, no entanto, não posso dizer que tenha visto muitos exemplos de road rage. É assim que toda a gente conduz e não é por tentar matar o outro condutor que se vai lá chegar primeiro. Já vi alguns acidentes graves. Carros completamente desfeitos na berma da estrada ou num separador central. Geralmente acontecem por imperícia do condutor e não envolvem mais do que um carro. É tão raro não estar no engarrafamento que, à mínima nesga de estrada livre, se vai de prego a fundo. Apesar de os automóveis andarem todos batidos e riscados, os acidentes com outros carros são raros. O ocasional toque acontece, claro. Ontem vi um. Um candongueiro forçou demais e acabou por encostar ao carro de uma senhora. Ela não esteve com meias medidas, saiu do carro, deu a volta à Toyota Hiace, abriu a porta do passageiro e tentou dar um par de estalos ao condutor. Ele não replicou. As angolanas têm a mão pesada e eles não se atrevem a bater numa mulher.

As mulheres são o motor da economia angolana. Elas têm os trabalhos. Os homens querem empregos. Vemos milhares de condutores, seguranças e controladores. Há muitos vendedores de bugigangas na rua e muitos carregadores ao alto. Elas passam o dia inteiro com a loja a cabeça, muitas vezes com um filho às costas e outro na barriga. Não digo que seja sempre assim, porque já vi muitas excepções, mas por vezes penso se não era mais acertado insistir nos programas em que se entrega a gestão de recursos à matriarca…


Vendedora de fruta


Vendedora de chinelos, com mais um filho a caminho


Vendedora de bananas, com mais um filho a caminho. Terá 14 anos?

Já referi que nas ruas se compra e vende tudo. As coisas mais inusitadas aparecem nas esquinas. Mas reparei que todas partilham uma característica. São objectos úteis, têm um fim objectivo, satisfazem necessidades práticas. Vende-se comida, bebida, mobília, acessórios para automóveis, peças usadas, electrodomésticos, roupa e cosméticos. Como Luanda é uma cidade cheia de surpresas, ontem vi à venda uma coisa que diria ser impossível vender-se numa esquina de Luanda. Peixinhos dourados! Na Maianga estava um sujeito com dois sacos de plástico com água e meia-dúzia de peixinhos. Três pretos e três dourados. Fiquei perplexo. Quem é que, no seu perfeito juízo, vende peixinhos dourados em Luanda? Suponho até que a pequena fatia da população de Luanda que se pode dar ao luxo de ter aquários em casa não precise de comprar peixes na esquina… Que mais haverá à venda nesta terra?


As omnipresentes galinhas

A recente discussão do novo acordo ortográfico deixou-me cheio de comichões. A tentativa de harmonizar a ortografia de duas línguas que já não partilham a gramática nem a construção frásica parece-me, no mínimo, inútil. O argumento de que Angola e outros países africanos já o adoptaram é também estranho. São poucos os letreiros em que as coisas estão bem escritas. Fará sentido aplicar um novo acordo ortográfico quando a população nem sabe usar o antigo?


Os pintores de letreiros assinam sempre a obra


Em telas de todos os tamanhos

Como o gerador estava sem gasóleo, ficávamos às escuras da próxima vez que faltasse a electricidade. Foi preciso ir às traseiras do prédio para lhe encher o depósito. Nas traseiras existiu um pequeno pátio onde os inquilinos podiam lavar e estender a roupa. Actualmente está ocupado por uma série de jaulas onde se mantêm em cativeiro diversos geradores. Há geradores pequenos e grandes e cada um de sua cor. O nosso é azul e estava cheio de sede. O gasóleo está armazenado em jerrycans que se arrumam entre a parede e a máquina. Como a jaula é apertada e o gerador está mesmo no meio, a posição de abastecimento é um pouco ingrata e levantar os 20 kg de gasóleo à altura da cintura com os braços esticados e acertar no funil sem levar um banho é complicado. Lá consegui fazê-lo. Devemos estar descansados nos próximos meses.

Tudo o que deixa de servir é deitado para a rua. De alguma forma acabará por desaparecer. Com o lixo é assim que se processa. Com os carros, é o mesmo. Quando se abandona um automóvel ele acabará por desaparecer, quer por ser destruído por uma obra qualquer, quer por ser desmontado e vendido às peças nos mercados. Vêem-se automóveis muito recentes abandonados nas bermas. O que me faz confusão é ver carros blindados abandonados. Em Luanda já vi pelo menos três.


A decomposição já começou


Quem é que abandona um carroforte?


Até os letreiros que assistiram à independência angolana se vão sumindo lentamente


Todos os dias se varre o mesmo pedaço de estrada

Numa sociedade sem direito a luxos, de vez em quando vejo alguém a passear um cão. É algo que me deixa intrigado, especialmente porque os africanos costumam ter medo de cães. Mas não são só cães que se passeiam à trela. Ontem vi passear uma cabra…


Anda Bobby

Cada vez sei menos de Angola, mas tenho a ideia de que os ideais de Agostinho Neto estão de costas voltadas para os angolanos…


“Compra laranja doces
Compra-me também o amargo
Desta tortura
Da vida sem vida.”

In: Quitandeira

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

2 respostas a “Fim-de-semana”

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  1. Aqui neste cantinho á beira mar plantado, vamos tomando consciêcia nas riquezas que temos e que nem damos valor.

  2. Pouco tempo depois de chegar a Luanda, estava a porta do predio de uns colegas de trabalho a conversar com uma rapariga que vendia fruta: essa rapariga tinha 15 anos e 5 filhos!

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