Aerograma

Isento de Porte e de Sobretaxa Aérea

20  06 2008

Temas recorrentes

Hoje o dia foi mais calmo e tenho a oportunidade de escrever acerca daquelas pequenas coisas que foram sendo relegadas pela quantidade de Luanda que me tem entrado pelos olhos.

Numa das visitas aos musseques dei por mim a pensar que em Portugal tinha trabalhado em ruas semelhantes aquela onde seguia. Com tanto lixo e miséria como na angolana. Os bairros degradados, quer de lata, quer de tijolo são iguais em todo o lado. A principal diferença é que em Portugal sei que se andar umas centenas de metros numa dada direcção, saio do bairro e entro numa zona, não digo que normal, nem civilizada, mas menos miserável. Aqui anda-se quilómetros e a miséria mantém-se. Vai apenas variando a sua tonalidade.

Ao contrário de Portugal, aqui os cheiros esbatem-se. Apesar de haver muito lixo nas ruas e dos esgotos correrem a céu aberto, não se pode dizer que cheire mal. É certo que há sítios que emanam o seu fedor, mas o calor e a atmosfera equatorial fazem com que os cheiros passem despercebidos. Não é habituação, porque estou cá há tão pouco tempo que não posso estar habituado. Os bairros de lata portugueses têm um cheiro característico, causado pela perpétua escorrência de águas de lavagem. A saponária liberta um odor que se assemelha ao cheiro do detergente Super
Pop. É de tal maneira característico, que só o cheiro deste detergente me faz lembrar bairros degradados. Talvez por ter um cheiro muito activo e ser barato, seja o preferido nos bairros de lata. Vai na volta são apenas coincidências.

Cheguei à conclusão de que a relação do africano com o lixo é apenas um reflexo de um choque civilizacional em grande escala. A relação do africano tradicional com o lixo é simples: todo o lixo é biodegradável. Come-se e o resto atira-se para um canto. Passado algum tempo o lixo desaparece. O grande problema acontece quando adopta um estilo de vida ocidental, e o lixo que produz já não se degrada, amontoa-se e não desaparece. A relação com o lixo rege-se por princípios com 10 000 anos mas aplica-se a lixo que só se inventou há 100.

Com a migração das populações das aldeias para os arrabaldes de Luanda, os comportamentos não se actualizaram. O lixo continuava a ser lixo e era tratado como tal. Infelizmente, muitas gerações nasceram rodeadas de montanhas de lixo e aquilo que choca o branco ocidental é apenas a vida como ela é para o africano. Desde que cá cheguei já vi várias garrafas de cerveja vazias serem atiradas para o meio da estrada, onde se partiram. É banal ver alguém beber uma CocaCola e deixar cair a lata aos pés. O lixo faz parte da vida. No centro de Luanda há contentores de lixo e uma recolha mais ou menos regular, o que não impede que haja lixo por todos os cantos. Nos musseques não há contentores, ponto final. Mas entre ir deitar o lixo fora no sítio apropriado ou deixá-lo cair ao chão, a hipótese que vence é a que der menos trabalho. De qualquer das formas, a recolha de lixo limita-se a transportá-lo para uma imensa lixeira…


Os pintores de letreiros são todos artistas

Os buracos nas estradas nascem mais depressa do que se conseguem reparar e mesmo nas zonas feitas de novo, rapidamente aparecem. O calor que torna o asfalto mais fluido, associado às constantes travagens e mau estado das suspensões degrada as estradas num instante. Fica-se com a sensação que as rachas das paredes são tapadas com papel de parede…


O trânsito caótico e os candongueiros

No dia em que visitei a Fortaleza de Luanda, achei que podia ver um resquício do passado em bom estado de conservação. Afinal de contas é lá que está instalado o Museu Militar Central.

À entrada do forte há algumas peças de artilharia e dois aviões do tempo da Guerra do Ultramar. Todas as peças mais destacáveis já foram retiradas, as outras foram estragadas. No entanto ainda se consegue perceber o que eram. Espalhadas por ali há várias estátuas e pedras. Estão lá os marcos toponímicos que assinalavam a Avenida de Lisboa. Estão lá as estátuas de Camões, de D. Afonso Henriques e de outras personagens ilustres da história Portuguesa. Algumas foram retiradas do interior da fortaleza, outras foram trazidas de Luanda.

Ao contrário do que se passou nos países comunistas da Europa Central, onde destruíram todas as estátuas de Lenin e Stalin, aqui apenas se retiraram os símbolos do colonizador do sítio. Pela maneira como estão dispostas ou desmontadas, no caso das estátuas de pedra, fiquei com a sensação de que foram para ali levadas por não se saber o que fazer delas. O que representam não é amado nem odiado. É apenas indiferente.

A ânsia por apagar os símbolos portugueses passou também pelo rebaptismo de alguns arruamentos e povoações. O curioso é que o trabalho foi abandonado a meio e grande parte da toponímia subsiste.


Com algumas excepções, as únicas placas toponímicas que se vê são as pré-1975

A Angola independente optou por esquecer 500 anos de história. Existe uma Angola africana até ao séc. XV que dá um salto para o dia 17 de Novembro de 1975, com um episódio a 4 de Fevereiro de 1961. Por muito que se negue, o passado não desaparece. Faz-me lembrar um cantinho à beira-mar plantado que resolveu esquecer 50 anos da sua história recente.


Não percebo a cara feia…

Ontem chegámos a casa e corria ar nos canos. Não é raro acontecer em Luanda por isso nem sequer foi surpresa. Fomos adiando o jantar à espera da água. Acabámos por desistir e fazer o jantar com as reservas que tínhamos. As faltas de água são crónicas. As roturas vão acontecendo um pouco por toda a cidade. As canalizações são antigas e a manutenção que sofrem resume-se a ir tapando buracos. Felizmente que as reparações são rápidas (o que faz pensar que sejam um pouco atamancadas).


Condomínio fechado da praça de touros

As falhas no abastecimento eléctrico também são crónicas e só com o recurso a geradores um pouco por toda a cidade se consegue um abastecimento mais ou menos regular. O nosso está sem gasóleo…


in: Sanzala Angola

Com a partida dos portugueses, todas as infra-estruturas foram nacionalizadas e ocupadas. A praça de touros que estava a ser construída perto do aeroporto foi transformada em complexo habitacional. Tem ar de campo de concentração provisório, mas moram lá muitas famílias. O próprio Hotel Katekero, no antigo Largo Serpa Pinto, está a ser usado como edifício de apartamentos.


Parabólicas e roupa a secar na fachada do Hotel

Há uns dias perguntava-me acerca da história do refrigerante Mission of California. Julgo que já não se venda. Numa fotografia de 1970 já aparece a pintura na fachada do prédio em frente…


in: Sanzala Angola

Este fim-de-semana vou lavar os olhos a outras paragens. Talvez vá almoçar à ilha.

Acerca do autor

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Nascido no século passado com alma de engenheiro, partiu para Angola, de onde envia pequenos aerogramas.

6 respostas a “Temas recorrentes”

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  1. Através do teu relato diário vamos conhecendo uma Luanda miserável reflexo de um país bem massacrado pela guerra.

  2. Oi Afonso! Comecei a ler estes teus relatos, e não consegui parar! Muito Obrigado por partilhares com o mundo as tuas experiencias, fico a aguardar as proximas 🙂 F5, F5, F5…

    Abraço

  3. Afonso,
    Gostei de lêr o teu relato e vou continuar a lê-lo. Sou Africano. Conheço as tristezas de África mas só em África é que vais ver um pôr do Sol como deve de ser.
    Que tudo corra bem e boas sorte.
    Abraço, DP

  4. Finalmente encontrei o teu blog. Alguem ficou de enviar o endereco e esqueceu-se, nao e’, Jorge?

    Adiante… e’ so’ para dizer que tambem nao percebo a cara feia. Perdi muitos minutos a pensar na cara feia, de cada vez que a via, e ainda nao cheguei la’. Acho que o mais intrigante nao e’ a cara em si, mas o “porque e’ que ainda nao a mudaram??”.

    Continuacao de bom trabalho por ai’, espero que no fim a experiencia tenha sido positiva.

  5. O problema da descolonização, não apenas em Angola mas em outros países africanos, foi a profunda interferência soviética. A romantização da figura do “bom selvagem”, tanto no contexto africano quanto no latino-americano, é usada para promover uma visão desprestigiosa da influência cultural euro-asiática urbana e exaltar a miséria e o conformismo.

  6. Concordo plenamente. A completa desestruturação que se seguiu, em parte baseada na ideologia que sustentava os movimentos independentistas, ajudou a criar um caos que beneficiou a exploração do “bom selvagem” em proveito de interesses alheios.

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