Cuecas
Afonso Loureiro
Ontem foi o dia em que conheci a realidade da vida nos musseques. Vi os do Norte de Luanda e revi a imagem mental que tinha da cidade. Fiquei surpreendido por tudo, umas vezes pela positiva, outra pela negativa.
Os salões de beleza estão por todo o lado
Hoje fui conhecer os da parte Sul. São diferentes mas muito iguais. Há semelhanças óbvias, quer seja no lixo, quer seja na quantidade de pessoas que se amontoam. Ao passar de uma parte da cidade para outra, sinto que mudei de bairro, mas não me consigo aperceber dos seus limites porque as fronteiras são graduais. Não basta passar a vala para a paisagem mudar porque ela é igual em ambas as margens, no entanto, os bairros são diferentes de cada lado. Sente-se a diferença cá dentro. Não são melhores ou piores, aliás, são tão maus como o vizinho, mas sabemos que são diferentes.
A omnipresente fruta à venda
Os musseques mais próximos da cidade têm mais gente, mais confusão, mais lixo. À medida que nos afastamos do centro, as casas começam a ser um pouco maiores. Há bairros onde quase todas as casas estão isoladas umas das outras. Nalguns sítios, há mesmo uns pequenos quintais com um esboço de horta. No mínimo têm uma mangueira plantada.
Nestas zonas não há trânsito e os miúdos ainda não desenvolveram o sexto sentido que os faz desviar dos carros. Não há vendedores de tudo e mais alguma coisa no meio dos carros. Não há carros nem ninguém que compre. Bancas há, muitas. Mais pequenas e com inventários bem mais modestos que as da cidade. Não se vêem mulheres a transportar a mercadoria à cabeça. Cada um vende à porta de casa os artigos que se consomem no bairro. O habitual são as bolachas, as barras de sabão azul-esverdeado, as amostras de detergente Skip, Ariel, Sunlight, algodão e doces. Não vi pilhas à venda, que muita falta me fizeram. Nestes bairros há menos lixo. Há menos gente a produzi-lo e um pouco mais de preocupação (quase nenhuma, diga-se) em geri-lo. De quando em vez, vê-se um buraco para onde se deita o lixo e que deveria ser tapado (mas não é) assim que estivesse cheio. Os cães têm um ar menos doente. E vi mesmo uma menina com um cachorro preto ao colo, como um bébé.
Desta vez tirei algumas fotografias. O choque da véspera já passou e consigo moderar o instinto de fotografar tudo. Os locais devem perguntar-se porque querem os brancos fotografar o seu dia-a-dia tão igual. Haverá mais oportunidades de ver miséria.
Crianças a transportar lixo e terra
Nas zonas mais movimentadas vi tudo e mais alguma coisa ser transportado à cabeça. Vi garrafas de gás, alguidares cheios de garrafões de lixívia, de tubos de pasta de dentes, de outros alguidares. Vi cantinas inteiras (uma dúzia de panelas ou mais), que faziam uma pilha maior que a mulher que a trazia.
Cheias ou vazias, vão à cabeça
Outras transportavam um alguidar grande cheio de outros alguidares mais pequenos, ou um guarda-sol atravessado, ou uma caixa de cartão com mandiocas. Assisti a proezas de equilíbrio enquanto atravessavam a estrada a correr com uma bilha de gás à cabeça e depois apanhavam qualquer coisa do chão, mantendo a carga perfeitamente horizontal.
Pão fresco
Num dos bairros a que já não consigo chamar musseque vi um edifício em ruínas que me parecia familiar. Quando nos aproximámos mais vi que era uma antiga capela portuguesa que se mantinha de pé. Não entrei. Mais à frente foi preciso arranjar caminho para o outro lado da omnipresente vala. Numa margem havia uma espécie de lavagem em série de carros, onde pedimos indicações para as ruínas da ponte ou do vau que nos permitiria seguir para a margem Norte. Navegando de indicação em indicação acabámos por ir dar a um recanto absolutamente encantador. Numa curva do rio havia umas dezenas de embondeiros seculares que emprestavam ao local uma atmosfera de repouso a que ainda não tinha assistido nesta roda-viva que é Luanda. Consegui mesmo esquecer-me de que o rio que por ali passava afinal era mais uma vala, com as suas margens cheias de pedaços de plástico colorido. Depois percebi que o aspecto viçoso que as copas dos embondeiros apresentavam contrastava com os seus troncos cheios de graffiti e cercados de lixo e sucata. Deste lado da margem era o Benfica, exactamente igual ao bairro do outro lado do rio, mas completamente diferente.
Foi por esta altura que fiquei com a imagem do dia: Cuecas!
Por incrível que pareça, ainda não vi mais que meia dúzia de miúdos a correr nus de um lado para o outro. Reparei que todos os miúdos, desde que aprendem a andar até que me dão pela cintura, andam sempre de cuecas. Podem não ter roupa nenhuma no corpo, mas andam sempre com umas cuecas garridas, quase que a condizer com as margens das valas. Ao contrário dos miúdos a correr, esta imagem não me trouxe nenhuma revelação. Não me senti mudado. Mas deve ser um pormenor importante…
Como as crianças brincam porque são crianças, não pude deixar de reparar nos seus brinquedos. As meninas apanham a água negra que escorre pelas ruas e transportam-na à cabeça em latas de leite em pó, para a despejarem um pouco mais acima e voltarem a correr para a poça a jusante. Os meninos correm com capas feitas dos plásticos de bolhinhas que vêm a embrulhar electrodomésticos, ou enchem garrafas de óleo com lama.
As frotas de candongueiros têm nomes originais
Perto da cidade o trânsito torna-se mais caótico. As obras constantes vão cortando os acessos dos bairros periféricos ao centro da cidade. Grandes movimentos de terras para a instalação de valas em betão, para a abertura ou alargamento de estradas, sempre dirigidas por chineses, que se destacam dos operários por usarem um curioso chapéu de, imagine-se, chinês. Toda a gente quer passar a vala e as poucas passagens vão sendo cortadas com o avanço das obras. Às vezes são repostas, mas geralmente ficam para outra empreitada… Bairros inteiros ficam reduzidos a duas ou três saídas e algumas ruas são transformadas em becos com vários quilómetros de extensão. É óbvio que estes acessos estão sempre atulhados. Milhares de carros vão afunilando e arrastando-se durante horas para vencer algumas centenas de metros. Para tentar fugir deste caos há sempre a alternativa de fazer algumas dezenas de quilómetros em más picadas e chegar a outro estrangulamento. A única regra que há neste trânsito é a de que não se chega a lado nenhum. Se a rua está vazia ou até se consegue engatar a segunda velocidade, é porque a rua vai dar a nenhures. Ou então já deu, mas agora está cortada porque caiu um poste, porque o lodo da vala é muito fundo ou porque as obras já lá chegaram. Se a estrada tem saída, os carros estão colados uns aos outros e não andam.
Buracos e obras
Sim, há ruas nas quais corre a vala… numa delas decorre o mercado das peças novas, usadas e roubadas. Na verdade só há duas categorias. Vendem peças roubadas ou peças em vias de o ser. Nesta rua há quarteirões inteiros que só se podem percorrer a pé porque as águas vão enchendo os buracos maiores e nem os todo-o-terreno se atrevem a passar. A alternativa é percorrer alguns quilómetros até chegar ao outro lado da rua.
Peças originais
A concorrência
Porque o trânsito é infernal, demorámos mais de duas horas até chegar ao nosso primeiro destino. Em linha recta deverão ser uns cinco quilómetros. A hora de almoço foi sendo adiada a cada desvio provocado por estradas cortadas, trânsito parado, lodos fundos ou mercados cheios. Perto das duas da tarde era imperioso comer. Regressar ao centro de Luanda estava fora de questão. Só pelas quatro horas chegaríamos a um qualquer restaurante. A opção era só uma, comer o que houvesse, num dos muitos sítios que têm “Sopa e Almoço”. Confiei no motorista para escolher um mais asseado. A escolha não foi má. A primeira coisa para onde olhei foi para as mãos da cozinheira. Estavam limpas e segurava um pano limpo. Uma ajudante lavava loiça e talheres em água ainda limpa. Bons sinais. A comida estava tapada embora fosse cozinhada ali mesmo…
Bem sei que não se deve abusar da sorte, mas desde o pequeno-almoço que não comia nada… Resumindo, a ementa consistiu num funge bem batido (embora com algumas bolhas), num feijão em óleo de palma e em carne fresca estufada. O funge e o feijão estavam óptimos. A carne provei, mas não lhe dei muita confiança. É que aqui matam o bicho e cortam-no em dois. Vendem esses dois bocados que são divididos e revendidos, voltando a ser vendidos, cortados e revendidos até que os pedaços tenham o tamanho de uma noz. Nessa altura são cozinhados. Não se sabe muito bem qual era o aspecto do bicho antes de morto e como o corte é sempre com cutelo, há muitos ossinhos partidos no meio da carne. Ainda provei um pouco de calulu de raia.
Reparei num pormenor curioso: quando nos puseram os pratos na mesa havia algumas moscas pelo ar, que se foram aproximando da comida, naturalmente. No entanto, tiveram a cortesia de nunca pousar na comida até que acabássemos. Ou então fugiam dela…
Apesar do risco que é, a comida era muito saborosa e posso dizer que a gastronomia local está aprovada (e provada). Amanhã logo vejo como tenho a barriga…
Os filmes de acção são sempre os que saem mais
Nalguns recantos vemos pequenas oficinas que se dedicam a transformar tiras de sucata em carrinhos para transportar os garrafões amarelos de óleo de palma que são usados para armazenar água, gasóleo ou gasolina.
Estou em Angola há menos de uma semana e já vi uma Luanda muito diferente do que a maioria dos ocidentais tem oportunidade de conhecer. Na verdade nem sei se estão interessados em ver o que vi, ou saber como sobrevivem as pessoas à volta da cidade.
Incineração de lixo
Os meus colegas estão cá quase há dois meses. Têm consciência de que há miséria e de que a vida nos musseques é algo de muito diferente, mas ainda não se aperceberam do quão diferente é a vida dos outros 95% da população. Espero que continuem na ignorância.
Cheguei a casa coberto de pó. Pó no corpo e pó na alma. Não havia água…
Que grandes descobertas tens feito… hoje até gastronomia local, ainda bem que estava saborosa só espero que não te dê a volta á barriga.
Já não me sentia particularmente atraído pela ideia de ir ver os musseques in loco, e depois da “visita virtual” que nos proporcionaste com a tua descrição, ainda faço menos questão. Na verdade, acho que fiquei a conhecê-los tão bem quanto é possível fazê-lo à distância. Espero que esta etapa seja de curta duração, porque é óbvio que não tem sido agradável. E tentemos não pensar que, se um musseque para um de nós é um episódio, para quem lá vive é quase uma prisão de onde é difícil sair.
Adiante…